CONFIGURAÇÕES EDÍPICAS DA
CONTEMPORANEIDADE:
reflexões sobre as novas formas de filiação
in
Pulsional Revista de Psicanálise, São Paulo, ano XV, 161, 88-98,
set. 2002
Introdução
As últimas décadas têm sido marcadas, sobretudo no Ocidente, por
profundas mudanças de valores, comportamentos e identidades. Como
exemplo, podemos citar: as modificações nas condições de procriação
(procriação artificial, doador de esperma anônimo, barriga de
aluguel, embriões congelados) ; as mudanças nas formas de filiação e
de criação dos filhos (alterações no sistema de atribuição do
sobrenome, pais adotivos, pais artificiais, monopaternidade,
homopaternidade); as demandas de modificação de identidade sexual (transexualismo);
as novas práticas sexuais (sexo pela internet) e os limites impostos
à sexualidade (o surgimento da Aids). Entretanto, tais
transformações não são, em sua essência, um fenômeno completamente
novo devendo, talvez, ser consideradas como "reorganizações"
coletivas.
O que assistimos dá continuidade a um processo de mudanças cujas
origens remontam ao Sec. XVIII com a Revolução Industrial. Este
processo foi acentuado após a primeira Guerra Mundial: quando os
combatentes voltaram dos Campos de Batalha, encontraram suas esposas
perfeitamente adaptadas ao trabalho fora de casa e decididas a não
renunciarem à esta conquista. A década que se seguiu, conhecida como
"os anos loucos", apoiada pelos movimentos feministas consolidou
esta situação, acirrando ainda mais o debate, já iniciado no Séc.
XIX, sobre o lugar dos homens e o das mulheres nas relações sociais,
no trabalho, na reprodução, nas questões demográficas e outras
tantas. Tais movimentos resultaram em uma nova organização
sócio-político-econômica que levou, dentre outras coisas, a uma
discussão completamente nova a respeito da sexualidade,
particularmente em torno dos "perigos" de separar sexualidade e
procriação. Surge, a partir daí, um discurso revolucionário a
respeito do sexual cujo expoente máximo é, sem dúvida, a
psicanálise: um dos seus textos pivôs, os Três Ensaios, constitui,
justamente, a primeira formulação sistemática sobre o tema.
Os avanços da tecnologia e das ciências que seguiram a Segunda
Guerra Mundial trouxeram importantes descobertas, em particular no
campo da medicina, além de criaram e popularizaram utensílios
domésticos, o que possibilitou mais tempo livre. Concomitantemente,
a fim de fazer circular o capital, foi necessário incrementar o
consumo, o que exigia um aumento da renda familiar. Este aumento só
foi possível com a participação das mulheres que passaram a ser cada
vez mais convocadas a juntarem-se às fileiras da força de trabalho.
Estes reposicionamentos sociais e redefinições de papéis, juntamente
com o aparecimento da pílula anticoncepcional, tiveram participação
decisiva na chamada "revolução sexual" dos anos sessenta. As
repercussões destes movimentos nas relações homem/mulher, sobretudo
nos jovens que começaram a ver e a viver a sexualidade de forma
totalmente diversa, foram profundas. A liberação, em alguns países,
do aborto, o morar juntos, ter relações sexuais sem que as pessoas
envolvidas fossem casadas, as separações - desquites e divórcios -
que tornaram-se mais frequentes; as relações envolvendo pessoas do
mesmo sexo aparecendo a céu aberto, tudo isso passou a integrar a
paisagem social.
As reações à esta "nova ordem" foram imediatas: falou-se do fim da
família, da decadência dos costumes e da moral. A mulher que
trabalhava fora, e que tinha acesso à pílula, estaria mais exposta
às tentações de relações extra-conjugais; previam-se problemas
psíquicos terríveis para os filhos de pais separados; a presença
menos efetiva da figura paterna levaria indubitavelmente à
dificuldades particulares de subjetivação, e assim por diante.
Entretanto, quando, no início do Sec. XXI, olhamos para trás e
reavaliamos os temores das décadas precedentes constatamos que nada
de dramático aconteceu: as famílias continuam compondo-se e
decompondo-se; os filhos e filhas de casais separados estão bem, em
alguns casos melhores do que aqueles cujos pais não se separam; às
manifestações da sexualidade que fogem às regras ainda são tratadas
de forma preconceituosa; a questão do abordo continua
problemática...
Uma primeira conclusão que podemos tirar de tudo isso é que embora
os limites às praticas sexuais tenham se modificado bastante - hoje
há, sem dúvida, menos repressão à sexualidade - o acesso ao sexual,
ao recalcado, continua, como sempre, um enigma por vezes
problemático: a ineficácia das campanhas tanto de prevenção da
gravidez na adolescência quando da importância do uso do
preservativo são os exemplos dramáticos de como o sexual, irrompendo
em lugares mais inesperados, foge a qualquer apreensão direta.
Todas estas mudanças, e suas consequências particulares, sugerem que
a espécie humana atravessa, com intensidade variável no tempo e no
espaço, aquilo que podemos chamar de "crise das referencias
simbólicas". Ao mesmo tempo, o fato destas "crises" não levarem a
uma ruptura, a uma desestruturação, da civilização permite supor, e
temos aqui um ponto central deste texto, que não existe uma maneira,
um caminho, que defina, de forma única e definitiva, e muito menos
normativa, o acesso à Ordem Simbólica e às relações entre sujeitos
proprias do humano. Ou seja, não há um modo único de subjetivação.
Na atualidade, a "crise" parece afetar mais abertamente o sexo
masculino. Segundo alguns autores, esta "crise" seria a responsável
pela chamada "crise da masculinidade" ou ainda pelo "declínio do
poder paterno". Tais conclusões, entretanto, merecem uma reflexão
mais detida: se declínio existe, é um declínio do patriarcado devido
às transformações, sobretudo econômicas, que produziram o homem
moderno. O que está, de fato, em crise, o que vem sendo reavaliado,
é aquilo que desde tempos imemoriais tem sido aceito como única
possibilidade de subjetivação: a referência ao pai. Isto significa
que a "crise da masculinidade" é um reflexo de uma "crise" ainda
mais profunda: a da atribuição fálica como organizador social . As
mudanças sócio-político-econômicas das últimas décadas relevaram o
caráter imaginário de uma forma de organização social onde o homem
ocupa o lugar central. Isso fez com que estes últimos passassem a
ser questionados; coisa nova e, para alguns, insuportável.
A função fálica, ou se preferirmos, "o outro da mãe", é cada vez
menos exercida pelo homem, o que pode provocar profundas crises de
angústia. Que haja algo que organize, que separe a célula narcísica
mãe-filho, é condição fundamental para que o sujeito se constitua.
Entretanto, dar a isto o nome de "Nome-do-Pai", ou "Função paterna",
é um reflexo do patriarcado. O que vem ocorrendo, é que a
necessidade - imaginária - que este lugar tenha que passar pelo
homem (por aquele que tem o orgão) vem mudando. Nesta perspectiva, a
"crise da masculinidade" é, no fundo, uma "crise dos homens" na
medida em que estes últimos são cada vez menos convocados para
ocupar o segundo tempo do Édipo. O homem que, tradicionalmente,
acreditava ter o poder, sobretudo econômico, sempre confundiu este
poder com o ter, e até com o ser, o falo. Este lugar, entretanto,
vem mostrando sua dimensão imaginária na economia de mercado.
Cabe, então, discutir como o processo civilizatório reage aos novos
modos de subjetivação.
Os novos modos de procriação
Dentre todas as transformações da contemporaneidade, aquelas que
tratam das posições médico-jurídicas referentes os chamados "novos
modos de procriação e de filiação" estão no rol das mais polêmicas.
Por exemplo, haveria um diferença significativa entre o investimento
materno e/ou paterno no caso de uma gravidez tradicional e no caso
de um fecundação in vitro? Em que os processos de subjetivação de
uma criança adotada onde, de alguma forma, as duas famílias existem,
se diferenciariam dos de uma criança gerada por um processo
biotécnico de inseminação artificial com doador anônimo? As crianças
criadas por apenas um dos genitor (as vezes o outro é totalmente
desconhecido), ou aquelas criadas por um casal do mesmo sexo terão
necessariamente problemas de subjetivação? Ou seja, a falta de um
dos genitores - monopaternidade - ou a presença de duas pessoas do
mesmo sexo - homopaternidade - terá repercussões particulares nos
processos identificatórios e, por conseguinte, na organização
psíquica do sujeito?
Sem dúvida, as questões colocadas por estas novas configurações
familiares submetem alguns dos pressupostos psicanalíticos a dura
prova. Com efeito, estamos lidando com perguntas que nos permitirão
separar aquilo que, de fato, revela do domínio da psicanalise,
daquilo que pertence ao fantasma. Uma coisa é a psicanálise
pronunciar-se sobre a dinâmica da filiação; outra coisa é ela
apresentar-se como aquela que sabe exatamente como esta dinâmica
deve ocorrer. De duas, uma: ou a psicanálise se coloca como guardiã
de uma ordem simbólica suposta imutável, reflexo de uma forma única
e idealizada de subjetivação baseada nas normas vigentes - neste
caso a psicanálise teria o poder de deliberar sobre o normal e o
patológico - ou, seguindo o exemplo de Freud que sempre soube
revisitar a teoria a partir daquilo que a clínica e as mudanças
sociais lhe apresentavam, devemos verificar como alguns pressupostos
psicanalíticos reagem às novas configurações da contemporaneidade.
Partidário da segunda opção gostaria neste trabalho de centrar a
debate sobre um destes modos de filiação, a homopaternidade, e os
processo de subjetivação. Ou seja, as repercussões que esta nova
forma de filiação terá na construção do mito individual e na
produção da verdade singular do sujeito.
A homopaternidade
Sobre esta questão, a psicanálise tem sido frequentemente convocada
a posicionar-se. Os que são contra a homopaternidade alertam sobre
os perigos psíquicos que a criança estaria sujeita frente a não
diferença sexual dos pais. Os mais radicais alegam que a criança
exposta a dois sujeitos do mesmo sexo e aos fantasmas delirantes
destes últimos sobre a não diferença dos sexos, teria seus processos
psíquicos fundamentais entravados e, consequentemente, sua
subjetivação - o acesso ao simbólico, à lei - comprometida. Sem a
função paterna, que aparentemente o casal homossexual não saberia
sustentar, a diferença entre os sexos, ausente no próprio casal pois
este último estaria preso em uma relação especular pautada pelo
narcisismo, não ocorreria. Partindo da premissa que o casal
homossexual não refletiria para a criança a imagem dos dois sexos,
sustenta-se o imperativo da presença de pais de sexos diferentes
para que a situação edipiana posso acontecer. Há ainda aqueles que
argumentam que a família se desintegraria e que, mais cedo ou mais
tarde, isto traria conseqüência catastróficas para a organização
social. Outros afirmam que a adoção por uma casal do mesmo sexo é
uma forma de afirmar a normalidade da relação, o que colocaria a
criança no posição de objeto fetiche. Juntam-se a isso, posições
religiosas que vêem na homopaternidade uma ratificação de uma
relação considerada contra-natureza.
Na maioria dos debate sobre a homopaternidade deparamo-nos com as
posições normativas descritas acima. No entanto, as argumentações
não procedem. Vemos repetir a mesma ortopedia visual simplista que,
outrora, aplicou-se às situações monoparentais: por ter apenas uma
imagem, a organização psíquica infantil ficaria deficitária. Como se
a diferenciação sexual passasse pela anatomia dos pais! Quanto à
relação especular, ela pode estar presente tanto na solução
heterossexual quanto na homosssexual .
Contudo, mais importante do que debater sobre a pertinência ou não
destas posições extremas, o relevante é alertar contra uma forma de
arrogância psicanalítica que se vê detentora de uma verdade que lhe
autorizaria determinar as condições ideais para um desenvolvimento
psíquico normal. Uma leitura atenta do que vem sendo publicado e
discutido sobre a homopaternidade revela, na grande maioria dos
casos, que os pressupostos teóricos psicanalíticas vêm sendo
utilizados para sustentar um discurso ideológico secular sobre as
estruturas familiares. Passou-se da análise da dinâmica dos
elementos presentes no funcionamento psíquico à uma prescrição
normativa das condições de subjetivação. Tomando a família
tradicional baseada no "poder paterno" como referência de
normalidade e detentora das condições ideais de organização
psíquica, todo modo de filiação que escape a este modelo traria
perturbações psicossexuais .
Entretanto, não foi preciso esperar a psicanálise para saber o
quanto a família tradicional está longe de ser um modelo ideal. O
argumento psicológico, que defende a importância do par homem/mulher
para a saúde psíquica da criança, dificilmente se sustenta. A
prática clínica é a maior testemunha das derrapagens nas relações
familiares. Na clínica infantil, exemplos não faltam onde o problema
apresentado pela criança traduz a grande confusão dos pais quanto a
seus respectivos papéis, o que pode gerar, consequentemente, uma
indefinição do lugar da criança como filho, ou filha. Temos ainda
situações onde um dos pais, senão os dois, não participa, às vezes
nem mesmo existe, na vida da criança. E, nem por isso, esta última
apresenta um problema particularmente dramático.
Ainda que os primeiros significantes que nos designam sejam "homem"
ou "mulher", tal designação não implica a questão da erogenização do
corpo - que passa pelo afeto. Ou seja, não basta o significante para
que, na ordem simbólica, o sujeito se posicione como homem, ou
mulher. Este posicionamento não é indiferente ao lugar que a criança
- que tem chances de tornar-se sujeito - ocupa no inconsciente dos
pais bem antes mesmo do seu nascimento e da dimensão narcísica
destes últimos, enfim, da dinâmica da economia libidinal da família.
O essencial para que o sujeito se constitua é que ele seja
simbolicamente reconhecido pela palavra do Outro, encarnado, na
maioria das vezes, pelos pais. É este reconhecimento, responsável
pela inscrição do sujeito na função fálica, que transformará a
criança – a partir do real de sua anatomia (sexo) – em ser falante,
homem ou mulher.
A partir do que foi dito, acreditamos que a questão que, de fato,
releva da psicanálise é a seguinte: o que permanece, o que há de
fundamental, para que a subjetivação ocorra e isso independentemente
do modo de filiação?
Reorganizações edípicas
Como sabemos, o complexo de Édipo envolve investimentos eróticos e
agressivos da criança em relação às figuras parentais; a
persistência destas ligações estaria no centro das neuroses. Além
destes elementos encontram-se, também, aqueles relativos aos
investimentos libidinais dos pais em relação à criança. "Resolver" o
Édipo, ou seja, constituir-se com o sujeito desejante, significa não
ocupar o lugar de objeto de gozo dos pais, ou de seus substitutos, o
que eqüivale a separar-se das formações inconscientes do desejo dos
pais. A interdição do incesto que se segue estabelece limites tanto
para a criança quanto para os pais.
Se, por um lado, não existe dúvida quanto ao papel central do
complexo de Édipo na dialética de subjetivação, caso contrário o
edifício teórico da psicanálise viria abaixo, por outro lado, o
elemento central na dissolução do Édipo é o complexo de castração. A
ameaça de castração, presente neste complexo, é geralmente proferida
por mulheres que, para reforçarem sua autoridade e aumentar a
eficácia da ameaça, referem-se ao pai, ou a uma figura de peso na
vida da criança. Na menina, ainda que vivenciado de outra forma, o
complexo de castração também existe.
Assim, embora na situação edípica o agente castrador seja, na
maioria das vezes, atribuido à figura do pai, este último é apenas o
porta-voz de algo que lhe antecede: o complexo de castração.
Entretanto, o referido complexo tem, em Freud, o estatuto de um
fantasma originário (Urphantasien) herança filogenética de
"ocorrências reais dos tempos primitivos da família humana, e que as
crianças, em suas fantasias, simplesmente preenchem os claros da
verdade individual com a verdade pré-histórica" . A força deste
fantasma é tão grande que ele é capaz de remodelar, na imaginação,
as experiências vividas quando estas últimas não se adaptam ao
esquema herdado filogeneticamente . Como nos mitos coletivos, os
fantasmas originários oferecem à criança uma explicação, uma
solução, aos enigmas com os quais a criança se depara.
Lacan, como sabemos, ainda que fiel às posições freudianas propõe
uma visão bastante diferente do Complexo de Édipo. Ele teoriza a
existência de um pai separador - separação que visa diretamente a
mãe - por trás do pai imaginário proposto por Freud e transforma o
Nome do Pai em um conceito psicanalítico . Este pai toma contornos
dramáticos quando Lacan trata da père-version do pai real. O Édipo,
na perspectiva lacaniana, corre o risco de transformar-se em uma
etapa normalizante, termo, aliás, recorrente em Lacan. A partir daí,
foi possível formular as condições estruturais "ideais" para uma
travessia satisfatória do Édipo, e tratar as categorias de neurose,
psicose e perversão como estruturas fixas e imutáveis.
O risco é que, Em Nome do Pai, e como que para preservar o culto
milenar da figura paterna, a psicanálise erija-se como defensora da
autoridade paterna ou, se preferirmos, da função paterna, vendo na
sua ausência a explicação de todos os males. (Isso nos aproximaria
bastante das preocupações do clero católico quanto ao declínio da
autoridade paterna, representante de Deus.) Além disso, há um
"detalhe" que tem passado despercebido: designar o significante
organizador da ordem social de "Nome-do-Pai", e/ou "função paterna",
não é sem consequências ideológicas. Por outro lado, a chamada
"segunda clínica" de Lacan, que pode ser pensada como uma tentativa
de compreensão das novas formas de sintoma, mostra o quanto ele
estava atendo às mudanças nos laços sociais e às novas configurações
de angústia daí advindas.
O que é central no édipo é que, neste período, o sujeito se dá conta
de que está excluído de uma relação. A dificuldade deste período é
devido, principalmente, à bissexualidade constitucional de cada
sujeito e ao caráter triangular da relação edipiana . Entretanto,
nada indica que o caráter triangular deva ocorrer com duas pessoas
de sexo diferente. Afirmar isso, equivaleria a dizer que crianças
criadas por um genitor apenas ou em instituições, aquelas que
perderam um dos genitores, as que cresceram em famílias matriarcais
onde a presença masculina não existia e tanto outros arranjos que
fogem ao lugar comum, todas estas crianças teriam problemas na
resolução do Édipo.
Passar do modo de relação narcísico para o objetal, renunciar ao
narcisismo primário em prol dos valores culturalmente aceitos, e
outros tantos processos de perdas e de limites marcados por
movimentos pulsionais e identificatórios, tudo isso caracteriza o
complexo de castração. Isto só é possível, como escrevi em outro
lugar , graças à função do Outro primordial que, encarnada
inicialmente na mãe, vai "introduzir a criança no mundo da metáfora
onde os objetos secundários substituem os primordiais: para
manter-se o narcisismo secundário, o do eu, deve-se sacrificar o
narcisismo primário. O bebê humano que recusasse esta necessidade
seria impensável como humano, excluindo-se da cultura". Não é a
morte biológica que a falta do Outro traz mas, antes, a morte
ontológica que tem sua expressão máxima em algumas formas de
psicose. Resumindo: o complexo de castração traduz as restrições que
processo civilizatório impõe à criança para que ela se constitua
como sujeito. O período edipiano, momento máximo da introjeção dos
valores culturalmente aceitos - o superego é o herdeiro do complexo
de Édipo - constitui a etapa derradeira deste processo. Sua
dissolução depende da ordem simbólica que, na sociedade ocidental,
tem no pai seu representante mas, não seu guardião. O Édipo, como
toda representação fantasmática, é ao mesmo tempo universal e
singular. Mas a maneira como esta representação é tratada
socialmente é histórica e varia no espaço e no tempo.
Tendo em vista as mudanças nos laços sociais e considerando o que
foi dito, podemos levantar algumas questões: seria possível atribuir
à função paterna o mesmo estatuto de fantasma originário que Freud
atribuiu ao complexo de castração? Isso transformaria a função
paterna em "solução paterna ": uma possibilidade de subjetivação
entre outras. O complexo de castração sendo um fantasma originário
permite que este fantasma seja simbolizado, metabolizado, por várias
vias. O significante Nome-do-Pai é, sem dúvida, um articulador
poderoso para que a introdução na ordem simbólica, metafórica, seja
possível. Mas, será o único? Haveria outras saídas? As mudanças na
atualidade que, como vimos, não trouxeram nenhuma transformação
radical no processo civilizatório, não sugeririam a possibilidade de
arranjos diferentes?
O que vai diferenciar as crianças criadas por um casal do mesmo sexo
das outras é o que diferencia os seres humanos entre si: a
particularidade do trajeto identificatório e as escolhas de objetos
de cada um. Cada modo de filiação - homopaternidade, adoção,
monopaternidade, famílias tradicionais, famílias separadas, um, ou
os dois, genitores falecidos e toda outra forma que pudermos
imaginar - terá a sua própria configuração de angústia. Mas, do
ponto de vista da constituição do psiquismo não existe, a priori,
nenhuma evidência para dizer que um modelo é mais ou menos
patogênico. Não há quem não conheça uma criança que se encaixa num
destes modelos e que, nem por isso, apresente problemas particulares
de subjetivação.
Estudos sobre o destinos psíquico das crianças criadas no modelo
homoparental não revelam nenhuma anomalia. As conclusões de um
trabalho em pedo-psiquiatria realizado em Bordeaux, França, com 58
criança que têm pais do mesmo sexo mostrou que o desenvolvimento
psicossexual destas criança é tão normal quanto o de qualquer outra
criança: "ao que tudo indica, a homopaternidade não constitui, em
si, um fator de risco para as crianças; elas vão bem", conclui o Dr.
Nadaud com uma simplicidade lapidar.
Mais perto de nós, temos o espaço que o jornal "Folha de São Paulo",
na sua edição de domingo, dia 31 de março deste ano dedicou ao tema.
Na caderno "FolhaCoditiano" vários artigos debatem a questão da
adoção de crianças por casais compostos de pessoas do mesmo sexo.
Embora nada de conclusivo seja apresentado, o que se depreende da
matéria jornalística é que o maior problema enfrentado tanto pelo
casal homossexual quanto pelas crianças adotadas continua sendo o
preconceito. Do ponto de vista psicológico, nada de que desabonasse
esta forma de adoção foi encontrado.
Isso só reforça o que de há muito já sabíamos: o lugar do pai e da
mãe não tem que ser necessariamente ocupado por um homem e por uma
mulher. O que chamamos de "função paterna" e "função materna" não
necessita da presença de um homem e de uma mulher. A realidade
anatômica de quem cria a criança não é um elemento fundamental para
a construção da subjetividade desta última. Esta construção está
muito mais subordinada à organização psíquica daqueles que cuidam da
criança, de como eles se colocam em relação à sua própria
sexualidade, à fantasia que têm de ser pai e/ou mãe e, talvez
sobretudo, ao lugar que a criança, adotiva ou não, ocupa no universo
psíquico dos pais.
Considerações finais
Tudo isso sugere a hipótese de que as mudanças nos modos de
filiação, produzindo aquilo que, no início do texto, chamamos de
"crise das referencias simbólicas", não alteram os processos de
subjetivação. Estas "crises", longe de provocarem uma
desestruturação social, atestam a força do simbólico, da metáfora, e
mostram que o problema da homopaternidade não pode ser tratado pelo
viés de posições nostálgicas que tentam transformar em normas
soluções que pertencem à organizações sociais, e ordens simbólicas,
não mais sustentáveis na pós-modernidade. Utilizar os pressupostos
psicanalíticos para ditar os caminhos "normais" do desenvolvimento
psíquico a partir dos modos de filiação tradicionais e seculares,
eqüivale a esquecer que as construções teóricas da psicanálise
baseam-se em um terreno diferente da organização social: pulsões,
desejos, complexo de Édipo, relações de objeto, identificações. O
verdadeiro trabalho psicanalítico é, não apenas, o de analisar como
estes elementos organizam-se em um determinado momento
socio-histórico de uma dada sociedade para compreender a ordem
simbólica daí advinda, como também o de seguir os efeitos das
mudanças sócio-econômicas na dinâmica destes elementos permitindo,
assim, compreender a nova ordem simbólica. Valer-se da psicanálise
para, baseado nas organizações sociais mais comuns, sustentar que
apenas um modo de filiação é correto, corresponde a uma
imaginarização do simbólico o que é, no mínimo, perverso.
Se do ponto de vista social e legal as normas que definem uma
família são relativamente bem estabelecidas, do ponto de vista
psicológico as famílias são sempre construídas e os filhos sempre
adotivos. O fato de um homem e uma mulher viverem juntos e terem
filhos não significa que formem um família. Além disso, temos os
mais diversos arranjos onde os membros se sentem em família sem,
contudo, terem ligações sanguíneas: por exemplos aquelas que agregam
filhos de uniões anteriores. O que define uma família, o que une os
seus membros, são os laços afetivos, ou seja os investimentos que,
como todo investimento, carrega correntes afetuosas e agressivas:
não é raro uma família ser marcada pela rivalidade entre os seus
membros, pelo ódio entre os irmãos, pelo ressentimento para com os
pais.
Os argumentos de parentesco são múltiplos: biológico, social,
afetivo, religioso, cultural, histórico... Talvez o que tanto ameace
na homopaternidade é que este arranjo destroe a ilusão de
"parentesco natural" e abala nossas mais profundas convicções,
produzindo um retorno do recalcado que mostra a dimensão imaginária
das certezas e dos valores culturalmente tidos como Verdades .
Ao que tudo indica, o problema da homopaternidade, com as aflamadas
discussões que ele suscita, parece ser muito mais uma questão
sociológica do que psicológica. Os argumentos, a favor ou contra,
são, na sua grande maioria, de ordem político-social e religiosa.
Seja como for, devido à complexidade e a novidade da questão, toda
prudência é recomendada. Entretanto, para terminar, duas
considerações que me parecem oportunas. A primeira é a de que
teremos que esperar ainda mais alguns anos para pronunciarmos com
mais clareza sobre as angústias das crianças criadas por casais do
mesmo sexo. A segunda merece uma reflexão: até a presente data,
todos aqueles que apresentam algum tipo de problema ou patologia
mental, de comportamentos anti-sociais, tais como a delinqüência,
marginalidade, sociopatias, e tantos outros distúrbios, foram
criados por casais heterossexuais. Isto significa que o sexo
daqueles que se ocupam das crianças não traz, a priori, nenhuma
garantia. Mas significa, também, que devemos estar atentos à toda
idealização da heterossexualidade.
- Trabalho
apresentado na I Semana de Pesquisa em Psicanálise e Psicopatologia
Fundamental UFPA/UEPA, Belém, PA, de 8 a 12 de abril de 2002.
- Sobre esta questão, dois acontecimentos ganharam as primeiras
páginas da mídia no ano passado: o primeiro foi uma matéria sobre
uma francesa de 62 anos que gestou um filho com óvulo doado, e
inseminado com esperma de seu próprio irmão. Os debates
ético-jurídicos que se seguiram foram acalorados. (VEJA, 27/O6/O1) O
segundo, diz respeito a uma nova técnica desenvolvida na Austrália
que permite a fecundação por meio de uma célula não sendo mais
necessário o esperma. As perspectivas que se seguem são inúmeras: um
homem que não produz esperma pode fecundar; uma mulher pode fecundar
outra mulher, etc.
- Sobre esta questão ver: CECCARELLI, P. R., "O sexual da
Violência", in Pulsional, Revista de Psicanálise, São Paulo, XI,
106, fev. 1998, 78-81.
- TORT, M., ""La solution paternelle", in Logos & Anankè Revue de
psychanalyse et de psychopathologie , Paris, nº 1, 1999, p. 57-73.
- Uma ampla discussão sobre o simplismo de algumas posições foi
feita por Michel Tort. Conf. TORT, M., ""Quelques conséquences de la
différence «psichanalytique» des sexes", in Les Temps modernes,
Paris, TM, Juin-juillet-août 2000 nº 609, p. 176-215.
-Para uma discussão atual sobre as posições de estudiosos do assunto
de diferentes horizontes ver: LANGOUET., G., (org.), "Les «nouvelles
familles» en France", Paris, Hachette, 1998. E também: GROSS, M.,
(org.) "Homoparentalités, état des lieux", Collection La vie de L'enffant,
Paris, ESF, 2000.
- Sobre as origens da sexualidade "contra a natureza" ver o artigo
"Sexualidade de Preconceito". Conf:: Ceccarelli, P. R., "Sexualidade
e Preconceito", in Rev. Lat. Psico. Fund., SP, III, 3, 18-37, set.
2OOO.
- "... ambos os tipos de escolha objetal [anaclítico e narcísico]
estão abertos a cada indivíduo". Conf. FREUD, S., (1914) "Sobre o
Narcisismo: uma introdução". ESB, Vol. XIV, Rio, Imago, 1974, p.
104.
- Um debate sobre este tema intitulado "Homophbies psychanalytiques"
foi publicado no periódico Le Monde em sua edição de 15 de outubro
de 1999.
- FREUD, S., (1924) "A dissolução do Complexo de Édipo". ESB, Vol.
XIX, Rio, Imago, 1976.
- FREUD, S., (1917) "Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise,
con. XXIII,". ESB, Vol. XVI, Rio, Imago, 1976, p. 433.
- FREUD, S., (1918) "História de uma neurose infantil". ESB, Vol.
XVII, Rio, Imago, 1976, p. 148.
- Conf. LACAN, J., "La relation d'objet", Livro IV, Paris, Seuil,
1994.
- Conf. FREUD, S., (19123) "O Ego e o Id". ESB, Vol. XIX, Rio,
Imago, 1976.
- Conf. CECCARELLI, P. R., "A sedução do Pai", in GRIFOS. Publicação
anual do Instituto de Estudo Psicanalíticos – IEPSI - Belo
Horizonte, número 18, out. 2OO1, pp. 91-97.
-TORT, M., ""La solution paternelle", Op. cit.
- Tese de doutorado em pedo-psiquiatria defendida pelo Dr. Stéphane
NADAUD na Universidade de Bordeaux, França, em 10 de outubro de
1999. O longo artigo sobre este trabalho foi publicado no periódico
Le Monde, em novembro do mesmo ano.
- Uma interessante discussão destes aspectos foi apresentada por
Anne Cadoret.
Conf: CADORET, A., "Figures d'homoparentalité", in GROSS, M., (org.)
"Homoparentalités, état des lieux", Op.cit p. 169-173.
Paulo Roberto Ceccarelli*
e-mail:
pr@ceccarelli.psc.br
*
Psicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e
Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Membro da Associação
Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Membro da
"Société de Psychanalyse Freudienne", Paris, França; Consultor
científico (Editorial Reader) do "International Forum of
Psychoanalysis"; Membro do Conselho Científico da Revista Psychê;
Membro do Conselho Científico da Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental; Membro Fundador da ONG TVer;
Vice-presidente do TVer-MG; Professor no Departamento de Psicologia
da PUC-MG; Conselheiro Efetivo do X Plenário do Conselho Regional de
Psicologia da Quarta Região (CRP/O4).
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