Fale sério
com eles
Pais que tratam os
filhos como bobinhos perdem grandes encontros, pois crianças são
seres que sabem e entendem, alerta o psicanalista Nasio
CLARISSE MEIRELES
Pequeninos, desprotegidos, inocentes. Para o psicanalista
Juan-David Nasio, vem desse olhar superprotetor de muitos pais sobre os
filhos a dificuldade de diálogo por toda a vida. Segundo Nasio, pais que
não valorizam a sabedoria das crianças criam filhos inseguros, que não
confiam nos pais e acabam se escondendo deles, sem nunca chegar a se
conhecer de fato. Essa dificuldade é o tema da conferência "Como escutar
uma criança?", que o psicanalista, argentino naturalizado francês, dará
na Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro, nos dias 13 e 14 de
agosto. Discípulo de Jacques Lacan e de Françoise Dolto, uma das maiores
autoridades na análise de crianças, Nasio é professor na Universidade de
Paris VII – Sorbonne, há 28 anos e há 13 dirige a Associação Seminários
Psicanalíticos de Paris. Autor de 18 livros, como o recém-lançado O
prazer de ler Freud, ele acaba de ser condecorado com a Legião de Honra
da França. "Exerço a mais linda das profissões", diz. Com quatro filhos
(uma adolescente e três já adultos), ele diz que teve as mesmas
dificuldades que a maioria dos pais. "Ser psicanalista não me poupou de
nada", diverte-se ele. Pouco antes de partir com a mulher para uma
temporada no Club Mediterranée em Rio das Pedras, no litoral do Estado
do Rio, deu esta entrevista a ISTOÉ no hotel Copacabana Palace.
ISTOÉ
– Citando o tema de sua palestra, como se deve escutar uma criança?
Juan-David Nasio – Na psicanálise, há diferenças entre ouvir e escutar.
Ouvir é ouvir as palavras ditas e entender a idéia destas palavras.
Escutar é ser surdo às palavras. É se concentrar para captar o que a
criança tem de mais íntimo. Dou-lhe papel para desenhar, lápis, massa de
modelar e brinquedos. E pergunto: o que você desenhou? Isso é uma
comunicação no plano racional, o plano superficial. Eu ouço suas
palavras, olho seu desenho, os bonequinhos que ela modelou, os
brinquedos que ela usou. E há um segundo plano ou nível de comunicação,
chamado fantasioso. É preciso que eu esteja muito concentrado para que a
partir da comunicação fluida, direta, eu possa chegar a me comunicar,
escutar a criança no plano de sua fantasia, seu sofrimento, se ela tem
uma fantasia masoquista ou se se sente derrotada, por exemplo. Entendo
isso pelos desenhos e por algumas palavras. Com 35 anos de experiência,
posso dizer que escutar uma criança é muito mais difícil do que um
adulto.
ISTOÉ –
Por quê?
Nasio – Uma de minhas mestras, mme. Françoise Dolto, dizia: para ser um
bom psicanalista infantil, é preciso primeiro ser um excelente
psicanalista de adultos. Em ambos os casos escutar é difícil e precisa
de muita concentração. Mas quando se fala com um adulto, a concentração
é mais fácil. Com as crianças, é mais complicado. Primeiramente, há a
mãe e o pai. Depois, é necessário não se deixar distrair nem pelos
desenhos, nem pelo brinquedo, nem pela criança, que se mexe muito. É
mais difícil encontrar sua fantasia, captar sua intimidade. Ela escapa,
escorrega, foge. Por um lado, é mais inocente, mas ela brinca, não o
deixa se concentrar.
ISTOÉ –
E os pais, como devem
escutar seus filhos?
Nasio – Essa é uma pergunta muito comum: como fazer para escutar meu
filho e para me comunicar com ele? Eu digo: primeiramente, é preciso que
se sinta vontade, desejo de se comunicar com a criança. Parece evidente,
mas é bom que se diga. Às vezes, sem perceber, os pais não têm esse
desejo, ligam a tevê e ficam alheios.
ISTOÉ –
É errado falar com a criança de modo tatibitate?
Nasio – Sim. É preciso evitar falar com as crianças assim, a não ser com
bebês. É muito importante que o pai, a mãe ou a professora sintam a
criança como uma pessoa inteira, que não a sintam como algo pequeno. Não
se trata de achar que ela é adulta, mas que é um interlocutor válido,
alguém que compreende, sabe e sofre. Significa que você a respeita, que
a vê como sujeito. Não é fácil. Os pais têm a tendência de falar com os
filhos como se eles fossem sempre pequeninos, indefesos, fracos, sem
inteligência. Muitas vezes pensando: eles não sabem de nada. Não é bom.
É preciso falar-lhes como pessoas que compreendem. Eles sabem muito mais
do que nós imaginamos.
ISTOÉ –
O sr. pode dar um exemplo?
Nasio – A criança adotada, mesmo quando nunca se disse isso a ela, sabe
de sua condição. Ela tem um saber, talvez não consciente, de que é
adotada. Às vezes a mãe não sabe como ou em que momento dizer, o tempo
passa, o pai reluta em dizer. Com 12 ou 15 anos, contam-lhe que ela é
adotada. É pior. E ela vai dizer: eu já sabia. É porque a criança sabe
as coisas essenciais, básicas no que diz respeito aos sofrimentos dos
pais, mesmo se não se dá conta disso conscientemente. Uma coisa é o
saber com a cabeça e a outra é o saber com o coração. Isso é
extraordinário nas crianças e sempre me surpreende. Isso também não
significa que se pode dizer tudo. Há certas coisas que não é preciso
dizer. Mas a criança o sabe, é preciso encontrar o momento oportuno para
dizer-lhe.
ISTOÉ –
No caso de adoção, o
que o sr. aconselha?
Nasio – Vou generalizar a questão. Se me perguntam: é preciso dizer a
verdade às crianças ou não? Digo sim, mas em um momento oportuno. Se
digo muito cedo, é ruim, se digo tarde também. Existe um momento justo.
Também não se pode dizer as coisas brutalmente. Não se pode dizer de uma
vez: "Olha, você é adotado." Não! É preciso falar docemente, introduzir
o assunto com algo como: "Você se lembra de quando era criança?" Então
vamos ver algumas fotos. As crianças sempre gostam de ver fotos delas.
Enquanto se fala das fotos pode-se falar: "Olha, eu queria te contar uma
coisa que nunca te disse. Você era nosso bebê, mas, ao mesmo tempo, nós
não somos seus pais." É preciso dizer isso, mas suavemente, pouco a
pouco. Se a criança foi adotada bebê, pode-se dizer aos sete, oito anos,
a idade da razão. Não mais tarde. Se ela foi adotada após essa idade,
diga logo ou no máximo um ano depois.
ISTOÉ –
Quais os motivos mais comuns de consultas infantis no seu consultório?
Nasio – Em primeiro lugar, problemas escolares. Crianças com dificuldade
de aprendizado: dislexia (dificuldade de ler), dispraxia (dificuldade de
escrever) e discalculia (dificuldade de efetuar operações matemáticas).
O segundo é o medo. Às vezes mesmo acordadas, em casa, têm medo de
monstros, de bichos. É claro que todas as crianças têm medo – e os
adultos também –, isso é normal. O problema é quando o medo se
transforma em uma inibição, perturba a vida da criança. Em terceiro,
está a enuresia, o problema das crianças que fazem xixi na cama.
Acontece mais nos meninos. A enuresia diurna é mais rara e mais grave. A
noturna, quando a criança já tem sete, oito anos, atrapalha a vida
social. Ela não vai poder ir para o acampamento ou para a casa de um
amigo porque tem vergonha. Há também a agressividade, a criança bate a
cabeça contra a parede ou contra o chão, com raiva. Ou às vezes morde os
irmãos, os amigos ou maltrata o bichinho de estimação. E, por fim, a
depressão.
ISTOÉ –
O que esses sinais querem dizer?
Nasio – Muito. O primeiro ponto importante são os antecedentes nos pais.
Sempre que a criança tem esses sintomas, eles são encontrados na
infância dos pais. Ou o pai ou a mãe foram agressivos, medrosos, tiveram
enuresia, etc. É impressionante. Há um fator hereditário, seja
psicológico ou biologicamente herdado. No caso do medo, a criança é
superprotegida. Quanto mais ela é superprotegida, mais ela se sente
desarmada, indefesa, frágil. No caso da agressividade, são tiranas,
crianças extremamente mimadas, que se consideram os reis da casa.
Frequentemente, são filhos de pais mais velhos. A criança que se agride,
batendo a cabeça na parede quando os pais lhe chamam a atenção, é
chamada colérica. Muitas vezes também é uma criança mimada e é muito
comum que um dos pais tenha sido assim.
ISTOÉ
– O sr. poderia explicar melhor a questão da enuresia?
Nasio – A enuresia também é uma manifestação de agressividade, muitas
vezes de ciúmes de um irmão que dorme no mesmo quarto. É um sinal de
sadismo da criança. A urina é como um ácido que ela joga contra o outro,
seja o irmão ou um dos pais. A tristeza e a depressão são causadas, na
maior parte das vezes, pela separação dos pais. A criança sofre porque
perde a identidade familiar. O pai ou a mãe levam o filho ao consultório
porque ele está triste. E a criança diz logo: eu queria que meus pais
estivessem juntos. Depois ela se habituará. O homem é um ser adaptável.
Podem acontecer as piores coisas que nos adaptamos.
ISTOÉ –
O que os pais costumam dizer no consultório?
Nasio – Entre pais e filhos, há muitos não-ditos. Esses não-ditos vêm
justamente do fato de os pais não enxergarem os filhos como capazes de
ouvir e compreender o que se diz a ele. Ao mesmo tempo, isso cria na
criança o sentimento de que deve esconder certas coisas dos pais porque
teme decepcioná-los, chateá-los. Muitas vezes, por isso, os pais acham o
filho fraco, medroso, não muito inteligente.
ISTOÉ –
O que eles dizem dos pais?
Nasio – Eu sempre chamo as crianças primeiro. Não faço como os pediatras
que deixam os pais falarem pelas crianças. Eu vou à sala de espera e
chamo a criança. Os pais se levantam automaticamente. Eu lhes digo para
ficarem e converso com ela a sós. Pergunto-lhe se sabe por que os pais a
levaram ali. Começo a perguntar suavemente sobre sua família. Conto que
todas as pessoas que vêm me ver têm problemas. ‘Você tem problemas?’,
pergunto. Desse jeito a criança se comunica rapidamente, conta seus
problemas. Os filhos falam mais dos pais quando eles estão se separando.
É comum contarem que ficam tristes quando os pais estão saindo com
outras pessoas, quererem que continuem juntos. Muitos pais dizem que,
para os filhos, é melhor vê-los separados do que juntos brigando.
Mentira. A criança vai preferir sempre ver os pais juntos.
ISTOÉ –
Há muitas diferenças no relacionamento entre pais e filhos na América
Latina e na Europa?
Nasio – Não muitas. Basicamente, o que percebo é que as crianças aqui
são criadas com mais liberdade, com menos cobranças sociais. Na Europa,
em geral, é maior o peso do êxito escolar, passar para uma boa
faculdade. Fora isso, os problemas são muito parecidos.
ISTOÉ –
O que muda na relação
entre pais e filhos na adolescência?
Nasio – A adolescência é muito diferente. É próprio desta fase um grande
pudor. Mesmo as garotas que saem de umbigo de fora, por exemplo, se
sentem tímidas com um elogio mais direto. Elas podem brincar de mulher
fatal, mas no fundo têm um enorme pudor, vergonha excessiva, que é uma
forma de autocrítica. É típica dessa idade uma crítica excessiva. Aos
pais, à sociedade e a si mesmo. São juízes muito severos, muito cruéis.
Não perdoam nada nos pais. São muito preocupados com a aprovação social,
com o respeito dos princípios sociais, mas ao mesmo tempo são rebeldes
contra esses mesmos princípios. Eles têm um superego excessivo, muito
rígido, severo. O conselho que dou aos pais é para serem muito
pacientes. É preciso tolerar.
ISTOÉ –
O que os pais devem
fazer quando o filho se tranca no quarto e não quer conversa?
Nasio – O diálogo é sempre fundamental, mas acontece muito nesta fase de
o adolescente não querer se abrir. É preciso esperar, respeitar. O pai
deve ser tolerante, mas manter sua posição. Se ele quer ficar trancado
no quarto, diga que você não gosta e que continuará à disposição quando
ele quiser conversar. O importante é você sempre marcar sua posição. Uma
coisa interessante em relação ao quarto do adolescente é que é sempre
uma bagunça. E não adianta o pai pedir para ele arrumar. A gente fala
uma vez, duas vezes e depois espera. Muitas vezes, ao sair de casa, a
nova casa desse ex-adolescente bagunceiro será perfeita, impecável.
Inconscientemente, ele queria provocar os pais.
ISTOÉ –
Os pais ainda devem insistir em educar na adolescência ou a
personalidade está totalmente formada?
Nasio – Não está totalmente formada. É claro que ainda há muito a fazer.
Eu sempre digo aos pais: a adolescência é uma etapa, eles continuam a
evoluir até adultos. É difícil dizer que alguém está formado de forma
definitiva. Já vi pessoas mudarem toda sua vida de forma impressionante
depois dos 30. É verdade que a margem de mudança na personalidade de um
indivíduo diminui à medida que o tempo passa, mas não nos precipitemos.
Sempre é possível mudar alguma coisa?
ISTOÉ –
Como dar liberdade sem cair na permissividade?
Nasio – Esta pergunta não tem uma resposta clara, uma regra única. A
melhor forma de exercer o papel de pai é se concentrar em dar à criança
o lugar de sujeito, em enxergá-la como uma pessoa inteira, lembrando
sempre de seus direitos e deveres.
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