Proponho que cada bateria de
escola de samba, neste carnaval, quando estiver no ápice de
sua evolução à frente da comissão julgadora, pare
repentinamente por um minuto. Que o breque na alegria faça
uma clareira no samba, que um silêncio ensurdecedor se
escute por toda a avenida. Que baianas, porta-bandeiras,
mestres-salas, todos fiquem imóveis no lugar em que
estiverem. Sem mais um passo, por um minuto, só um minuto; o
suficiente para nos tomarmos de vergonha pela morte de João,
representante de tantos Joões e Marias.
Disse vergonha e não indignação. Ter
vergonha de si mesmo é muito diferente de estar indignado
pelo outro não ser como você. O indignado, antes de mais
nada, se auto-elogia: 'sou digno'. Penso na vergonha de
nossa cumplicidade acomodada, que hoje chora, mas amanhã já
esqueceu. O pior não tem limite.
A continuarmos espectadores indignados e
defendidos por cercas elétricas, carros blindados, ruas
privativas, seguranças fantasiados, o esquartejamento
público de um menino de seis anos vai passar, e algo pior,
impensável hoje, ocorrerá em breve.
Saiamos do maniqueísmo arbitrário dos
debates pretensamente objetivos de maioridade aqui,
minoridade lá. Os que defendem a penalização aos 16 anos são
os mesmos que tentam provar que crime é erro genético e que
a pena de morte é necessária. Há uma coerência nesse
raciocínio. Ele se baseia na pretensa previsibilidade do
comportamento humano, do 'pau que nasce torto morre torto'.
Já, já, estarão propondo exame de DNA do
recém-nascido para saber se mandam ou não para a cadeia
preventivamente.
Não precisamos entender a causa do
assassinato hediondo que nos sacode para saber que a punição
dos assassinos tem de ser rigorosa, embora jamais se
equivalerá à atrocidade cometida. Para essa punição não
precisamos mudar a lei, é só pararmos com ritualismos
jurídicos tanto obsoletos quanto obsessivos, que empatam há
tempos a discussão da cidadania. E que não venham com a
velha justificativa de que se não for assim será o tribunal
de exceção; nem com o orgulho de uma prudência do tempo
senhor da razão, encobridor da falência do sistema jurídico.
É claro que um fato como este clama melhor resposta que as
que temos, e é no calor do acontecimento que devemos
avançar, não quando a distância pintar tudo da mesma cor
parda.
Será que já não é hora de dizer que o
rei está nu? De percebermos que não se trata mais de
aprimorar o sistema jurídico: de 18, para 16 anos, amanhã,
para 14; mas de descobrirmos a necessidade de um novo
paradigma? Falamos muito que o mundo mudou, que o homem
desta nova era globalizada pouco tem a ver com o da era
industrial, que somos obrigados a reinventar a forma de
trabalhar, de educar, de amar, de curar. Todos os domínios
da sociedade passam por uma revolução criativa para viver
este novo tempo; e o jurídico? Vão continuar nos entoando as
mesmas cantigas de ninar elaboradas em um Iluminismo, hoje,
tão cheio de sombras? Orgulhamos-nos quando na ditadura a
sociedade civil foi tão bem defendida pelos advogados.
Entristecemos-nos - é só lembrar das denúncias de corrupção
do ano passado - quando esta mesma classe não enxerga a
premência, como as demais, de se reinventar e não de
requentar a mesma sopa. Acharam que o povo indignado,
alertado por suas trombetas garbosas, votariam em quem lhes
parecia impoluto, na recente eleição presidencial. Qual o
quê, que erro! O laço social do homem globalizado,
participativo e não hierárquico, como antes, exige novas
formas de julgamento, que não são o aprimoramento do que
havia, mas ruptura, invenção. Isto não se dando do dia para
a noite, teremos ainda que conviver com o velho sistema, mas
sabendo-o remendo provisório e não solução.
Defendia a vergonha como o sentimento
necessário para este momento. Não a vergonha do outro, ao
ser pego com a mão na botija, mas a vergonha fundamental de
existir, quando já não vale mais a pena. Quando a vida de um
menino se compara à de um boneco de festa junina, socado e
arrastado pelo asfalto, aos olhos de todos, a pena é grande
demais! É ilusório ficar esperando pelo futuro melhor do
Brasil. O Brasil é o País do futuro porque aqui o futuro
nunca chega. É o presente que deve nos guiar e não a utopia;
seja a positiva, do sonho, seja a negativa do pesadelo e do
medo.
Se continuarmos na política do salve-se
quem puder se entrincheirar em condomínios fortificados -
'gaiolas de ouro' - o desastre é previsível: o recuo do
agredido cria e reforça o agressor. Lembremos quão poucos
presidiários pararam a maior cidade da América Latina, por
telefone. Todos os que saíram correndo de seus empregos para
se defenderem não intuíram o óbvio: que ficariam presos à
deriva, em um congestionamento jamais visto, para surpresa
dos prisioneiros.
Precisamos de um tipping point,
como o descrito pelo jornalista canadense, Malcom Gladwell.
O 'ponto de desequilíbrio', assim traduziram, ocorre quando
uma comunidade passa, de um momento a outro, a ver o mesmo
fato de uma forma totalmente diferente. Por exemplo: em que
tenham valido os esforços do prefeito Rudolph Giuliani, de
Nova York, em baixar a violência com o seu plano de
tolerância zero, não é de se desprezar a importância do
'ponto de desequilíbrio'. No caso, a população, de
amedrontada a pôr um pé fora de casa, passou a se sentir
segura, acreditando ver um guarda em cada esquina, não
corrupto e amigo. Dificilmente isso seria possível, mas não
importa: da mesma forma que a sensação térmica tem um valor
diferente da temperatura, aqui também a sensação de
segurança é mais importante que os índices objetivos. A
sensação de segurança gera segurança, da mesma forma, a
sensação de agressão gera agressividade.
Onde está o 'ponto de desequilíbrio' que
nos conduzirá deste descalabro social para uma cidadania
colaboradora e honrada? Talvez no silêncio repentino dos
tamborins de nossas escolas de samba. Por um minuto só, na
avenida, compartilharemos de uma mesma vergonha: somos
brasileiros e o Brasil não precisa ser assim, se nós
quisermos.
*Jorge Forbes é psicanalista e psiquiatra. Preside o
Instituto da Psicanálise Lacaniana e é autor de Você Quer
o que Deseja? |