O desafio de uma antropologia das idades
The
challenge of an Anthropology of the ages
Neiva Vieira da Cunha
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia, IFCS/UFRJ
Bolsista do Depto. de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo
Cruz/Fiocruz.
Rua Almirante Alexandrino, 1876/201
20241-261 Rio de Janeiro — RJ Brasil
neiva.vieira@domain.com.br
O interesse das
ciências sociais, sobretudo a antropologia, pelo tema da velhice é
fenômeno recente, e deve-se, entre outros motivos, à dificuldade que
os pesquisadores têm de se voltar para a parcela mais idosa da
população e encontrar nela um objeto de reflexão. Durante muitos
anos, os estudos antropológicos limitaram-se a considerar os velhos
como "informantes privilegiados", sem, no entanto, conceder-lhes um
segundo pensamento. Essa dificuldade provem de uma tendência comum
na sociedade ocidental moderna, de valorização da infância e da
juventude como temas centrais de atenção não só do ponto de vista
social, mas também como objeto de estudo.
Os estudos antropológicos sobre a velhice, particularmente no
Brasil, têm acompanhado o próprio movimento de descoberta da mesma
por parte da sociedade. A visibilidade dos velhos e da velhice
evidenciou-se, sobretudo na última década, não apenas através dos
dados demográficos divulgados na imprensa de um modo geral, como
também pela experiência cotidiana, que nos faz conviver com um
número cada vez maior de idosos(as), tanto no espaço público como no
domínio da vida privada.
Diante das mudanças
ocorridas em nosso padrão de crescimento populacional a partir de
uma maior expectativa de vida associada a um declínio efetivo das
taxas de natalidade, instaurou-se um debate sobre a necessidade
urgente de implementar políticas sociais voltadas para esse segmento
da população. Novos termos, novos conceitos e noções começaram a ser
formulados, com o objetivo de buscar entender as nuanças das
representações sociais vinculadas ao processo de envelhecimento.
Atualmente, o tema da
velhice e os problemas a ele relacionados estão presentes nas
discussões de diferentes áreas do conhecimento e da intervenção.
Nessa discussão entre distintos saberes e práticas sociais, a
antropologia tem comparecido, sistematicamente, trazendo para a
reflexão a apreensão do fenômeno da velhice a partir de uma
perspectiva cultural. O livro Velhice ou terceira idade?, organizado
pela antropóloga Myriam Moraes Lins de Barros, é um bom exemplo
disso, revelando a participação dos antropólogos nesse debate. Os
artigos que o compõem, além de tornar visível parte da produção
acadêmica nesse área, procuram mostrar que, ao tratar de aspectos
específicos da velhice e do envelhecer, podemos refletir sobre nós
mesmos e sobre o homem em geral, dentro da mais clara tradição
antropológica.
Iniciativas como essa
são sempre estimulantes e particularmente bem recebidas, na medida
em que possibilitam a interlocução entre pesquisadores que vêm
insistindo em tomar como objeto de investigação grupos de memória,
em sua maioria grupos de idosos. No meu caso, o interesse por essa
área temática surgiu quando comecei a estudar um grupo de velhos
médicos sanitaristas remanescentes das grandes campanhas de combate
às endemias e vetores realizadas no país do início da década de 1930
até a de 1970. Após serem afastados de suas atividades em função da
idade avançada, e inconformados com essa espécie de banimento a que
foram condenados, eles resolveram, então, encontrar uma forma de se
manter juntos, promovendo encontros periódicos que passaram a
constituir locus privilegiado para o exercício de suas lembranças.
É exatamente esse
status "vazio de papéis sociais" atribuído aos velhos em nossa
sociedade que este livro tem o mérito de colocar em discussão. Nele
estão presentes algumas das principais questões deste recente campo
de estudo. Em seu conjunto, os artigos nele reunidos buscam
compreender os significados e valores atribuídos pelos homens à sua
experiência de vida. Quer referindo-se à relação da mitologia de
sociedades banto-falantes com os sistemas etários e de parentesco,
quer tratando das relação da velhice com o mundo do trabalho e da
família na sociedade ocidental moderna, o que está em pauta é a
análise dos símbolos e dos significados construídos em sociedade.
Na base desses estudos
estão as noções de tempo, espaço e pessoa. Tais categorias,
fundamentais em qualquer forma de organização social, são aqui
apreendidas a partir do estudo dos significados construídos
socialmente sobre as etapas da vida e pela compreensão das
construções de identidade individual e coletiva na velhice em
particular, etapa profundamente marcada pela consciência da finitude
da vida. Além disso, busca-se compreender a construção de narrativas
sobre o passado baseadas em memórias coletivas, o significado
atribuído aos espaços sociais enquanto "lugares de memória" e a
tensa relação entre tradição e mudança social.
O livro divide-se em
três partes: Velhice e espaço político, Formas de classificação e
geração e Identidade e memória, correspondendo, cada uma delas, às
diferentes ênfases atribuídas pelos autores a essas questões. No
entanto, há em comum a singularidade do olhar antropológico. Na
primeira parte, os artigos de Júlio Assis Simões e de Déborah
Stucchi discutem a participação cada vez mais expressiva dos idosos
no cenário político nacional e a conseqüente demanda por políticas
públicas voltadas para essa parcela da população.
A proximidade com meu
tema de estudo chamou minha atenção para o artigo de Júlio Assis
Simões, que examina como aposentados e pensionistas passaram a se
constituir em importantes atores no atual processo político e o que
esse novo movimento social tem revelado a respeito da população
idosa na sociedade brasileira contemporânea. Nesse artigo, o autor
procura demonstrar como os aposentados, identificados em sua maioria
como velhos — categoria aparentemente marginal e circunscrita ao
domínio das relações privadas — transformaram-se numa espécie de
corporação, com demandas próprias e interesses e formas de atuação
específicas no espaço público.
Iniciando com um breve
histórico da organização do movimento dos aposentados, Assis conduz
a análise do processo de constituição desse novo ator político
focalizando a elaboração da identidade do movimento a partir da fala
de lideranças e participantes das atividades das associações de
aposentados em discursos públicos e entrevistas. Procura dimensionar
também a repercussão alcançada pelas mobilizações dos aposentados na
mídia, principalmente a partir do início da década de 1990,
mostrando ainda como os militantes desse movimento legitimam a
construção de suas formas particulares de organização com base na
condição de abandono a que se acreditam relegados.
Na segunda parte do
livro, Guita Grin Debert aborda o estudo antropológico dos grupos
etários e suas categorias classificatórias. Também nesse segmento
estão os artigos de Clarice Peixoto, que procura traçar a trajetória
da formulação pública de novos termos, noções e conceitos vinculados
ao envelhecimento, e o de Theophilos Rifiotis, que analisa a forma
de representação do ancião nessas sociedades, onde a oralidade é o
modo privilegiado de transmissão e manutenção de conhecimento.
A contribuição de Guita
Grin Debert é importante no sentido de revelar as armadilhas que o
estudo da velhice, como tema de pesquisa, costuma apresentar para os
antropólogos que pesquisam as representações e práticas ligadas ao
envelhecimento, tanto em sua própria sociedade como naquelas muito
distintas da sua. Para a autora, a pesquisa sobre o tema da velhice
esbarra em algumas dificuldades, sendo a mais evidente delas a
consideração de se tratar de uma categoria socialmente construída,
fazendo-se, assim, uma distinção entre um fato universal e natural —
o ciclo biológico que envolve o nascimento, o crescimento e a morte
— e um fato social e histórico - a variabilidade das formas de
conceber e viver o envelhecimento.
Ressalta-se, tanto da
perspectiva da antropologia como também da pesquisa histórica, que
as representações sobre a velhice, a posição social dos idosos na
sociedade e o tratamento que lhes é dado pelos mais jovens ganham
significados particulares em contextos históricos, sociais e
culturais distintos. A partir do pressuposto de que a periodização
da vida implica investimento simbólico específico em um processo
biológico universal, a autora nos demonstra como a "terceira idade"
é uma criação recente das sociedades ocidentais contemporâneas, e
que sua invenção implicou a criação de uma nova etapa na vida, que
se interpõe entre a idade adulta e a velhice, sendo acompanhada de
um conjunto de práticas, instituições e agentes especializados,
encarregados de definir e atender as necessidades de uma população
que, principalmente nas duas últimas décadas, passou a ser
caracterizada como vítima da marginalização e da solidão.
O artigo de Theophilos
Rifiotis focaliza as condições de sociabilidade na "última etapa da
vida", construindo seu ensaio precisamente em torno do complexo
fenômeno encoberto pela noção de etapas da vida, aceita como um fato
biológico e universal. Partindo da análise de contos e lendas da
literatura oral de sociedades banto-falantes, o autor procura
demonstrar como aquelas sociedades desenvolveram uma noção de
dinâmica etária, que envolve uma etapa posterior à da vida
biológica, e como essa noção é importante para a definição das
estruturas de sociabilidade entre os grupos etários nessas
sociedades, sendo fundamental para a definição da condição de idoso.
Um ponto fundamental é
que o material analisado por Rifiotis aponta, sobretudo, para a
dificuldade de generalização sobre a condição do idoso nas
sociedades tradicionais e para a necessidade de que ela seja
interpretada a partir de um sistema específico que lhe dê sentido
próprio. É importante ressaltar que as narrativas por ele analisadas
foram coletadas junto a populações não urbanas, que vivem em aldeias
no interior do continente africano, expressando uma configuração
cultural específica que procura construir um tipo particular de
pessoa e de cidadão.
Sua análise levou-o a
identificar um tipo de narrativa na qual estão relatadas situações
de conflito entre o grupo de jovens e o de idosos, que reporta a uma
visão banto-falante sobre a ancianidade ligada ao dinamismo dos
grupos etários e ao conflito entre eles. Através do exame dessas
narrativas, o autor revela como elas podem ser compreendidas num
duplo sentido: de um lado, os jovens, que devem reconhecer a
sabedoria dos idosos e, de outro, os velhos, que precisam se
preparar para a próxima etapa do ciclo vital, ou seja, atingir a
condição de ancestrais.
A terceira e última
parte do livro reúne os trabalhos de Myriam Moraes Lins de Barros,
Cornélia Eckert, Maria Letícia Mazzucchi Ferreira e Alda Brito de
Moura, e trata da relação entre memória e construção da identidade,
compreendida no processo de envelhecimento. Myriam Lins de Barros,
pioneira nesse campo de estudos no Brasil, enfoca algumas questões
relativas à velhice das mulheres. Diante da dificuldade generalizada
de se vislumbrar a velhice como questão, tanto por parte de
estudiosos como pelos indivíduos em sua vivência diária, a autora
chama atenção para a velhice das mulheres em particular, que nesse
contexto se torna ainda mais insignificante. Enquanto que aos homens
velhos é dada maior atenção pelo fato de se compreender a
aposentadoria como uma mudança brusca de vida — passagem de uma vida
ativa e pública para um mundo doméstico e restrito —, a velhice nas
mulheres passaria mais despercebida, na medida em que para elas
seria apenas último estágio de um continuum sempre ligado à esfera
doméstica, espaço ao qual a mulher está ideologicamente vinculada.
O artigo de Cornélia
Eckert aborda a questão da memória e construção da identidade a
partir de um estudo sobre os mineiros de carvão da cidade de La
Grand-Combe, França, surgida em 1846 pela iniciativa de uma
companhia de mineração que ali resolveu explorar o "ouro negro".
Mediatizando a relação entre os homens e o trabalho produtivo, essa
companhia organizou toda a vida da cidade, fundando ali uma espécie
de "ética do trabalho" como uma cultura — a cultura operária
produtiva de capital. O domínio da companhia foi estabelecido não só
nos espaços fundados, mas também na multiplicidade de relações
sociais cotidianas, presentificando-se nas relações temporais dos
grupos que habitavam a vila mineira pelo consenso de seu projeto de
construção de uma comunidade de trabalho como "família corporativa".
Com o esgotamento da
atividade mineira, razão do enraizamento das famílias na localidade,
e das conseqüentes transformações do espaço e das relações de
trabalho, desencadeou-se uma crise que penetrou em todos os domínios
da vida social. Sem a mina, a profissão desapareceu e, com ela,
valores de referência de um grupo, de uma prática social e de um
modo de vida. Mas, apesar de experimentarem essa ruptura violenta da
história coletiva, os habitantes da cidade vivem o que a autora
define como "dialética da duração", uma espécie de recomposição
social da vida cotidiana a partir de sua memória coletiva. E é desse
ponto de vista que se torna possível compreender como este grupo
operário se reorganiza, apesar do processo de desestruturação
industrial e de desordem da identidade social da comunidade de
trabalho. Será a partir das famílias de antigos operários ainda
residentes na cidade, herdeiras de um tempo coletivo e portadoras da
memória do grupo, que esse trabalho de reconstrução poderá ser
realizado. E será nos diferentes domínios da vida social, nos tempos
de interação e nos lugares de sociabilidade, que a reinvenção do
cotidiano, a recriação dos pontos de referência, permitirá
reatualizar as práticas sociais e reordenar o tempo coletivo para
viver uma continuidade.
O artigo de Maria
Letícia Mazzucchi Ferreira procura demonstrar como a memória,
acionada sempre por um indivíduo inserido no presente, apresenta-se
matriciando as identidades negociadas no processo interativo
cotidiano. Seu trabalho tem por base pesquisa desenvolvida com
idosos residentes em unidades domésticas, em sua maioria vivendo
desacompanhados em casas que, por si, trazem as marcas do passado
vivido, definidas pela autora como "casas-testemunho", que remetem
aos tempos da família e da juventude.
A abordagem da memória
como processo social aparece interligada com a questão da velhice.
Conceito inserido num repertório cultural, social e historicamente
delimitado, a velhice transpõe o estatuto de processo biológico para
o de uma construção social, atravessada, no momento atual, por uma
ideologia da terceira idade, que atua postulando uma nova dinâmica
para o envelhecimento. Nesse sentido, uma das preocupações da
análise antropológica vem sendo a de estabelecer que representações
sociais estão sendo formuladas sobre a velhice, como os sujeitos se
definem velhos, como a idade cronológica instaura modificações no
âmbito dos códigos de valores e como as sociedades elaboram e
dispõem, no processo de interação social, as classificações etárias.
Nesse processo de
definição de identidades, de afirmação do sujeito num universo de
profundas alterações, cujo ritmo vertiginoso desafia a permanência
de valores e representações sobre o mundo vivido, num contexto de
rápida desintegração dos liames que unem os sujeitos ao passado, a
memória e a lembrança desempenham papel fundamental. Dessa forma,
discutir o papel da memória no processo de envelhecimento significa
abordar o locus privilegiado de construção da identidade do ser
velho e suas estratégias de afirmação nos espaços sociais. Ao
refletir todo um universo de representações e significados, a
memória constitui uma representação que os sujeitos fazem de sua
própria vida. Assim, como recorte analítico, a memória é tratada
pela autora com um nexo entre o indivíduo e seu mundo, sempre
acionada do presente e disposta na interface entre o indivíduo e o
social.
Finalizando o volume, o
artigo de Alda Brito da Motta reconhece positivamente a emergência
do tema da velhice e do envelhecimento, mas problematiza a questão.
Segundo a autora, a discussão do que fazer com a população de idosos
ganhou importância teórica, mas continua deixando em segundo plano o
que pensam, como realmente vivem e, sobretudo, o que desejam os
velhos. Nesse sentido, ressalta a importância de se refletir sobre o
que significa ter determinada idade ou fazer parte de determinada
geração na sociedade moderna ocidental.
Enfim, a questão
fundamental que os artigos reunidos nesse livro colocam é que ser
velho no mundo ocidental contemporâneo, assim como ser criança,
jovem e adulto, remete a configurações de valores distintas de
outros momentos históricos de nossa sociedade e de outras culturas.
As diferenças de gênero, de classe, de credos religiosos, de etnia,
assim como de inserção profissional estão, necessariamente,
presentes nas construções das representações e das experiências do
envelhecer.
Essas dimensões são
fundamentais na análise deste grupo etário, que por sua vez, não se
apresenta de forma homogênea, seja nas sociedades industriais
contemporâneas, seja nas sociedades tradicionais. A consideração da
diversidade cultural e a reflexão sobre essas diferenças são
aspectos próprios da análise antropológica, e os artigos aqui
reunidos tratam dessa questão ao apresentarem um processo comum a
todos — o envelhecimento — através das formas distintas e
específicas que ele assume para cada grupo social analisado. |