"Ratatouille" e o desejo
Sexta-feira, 13 de Julho
de 2007
Opinião - Contardo Calligaris
Quando o caminho do nosso desejo parece árduo, devaneamos para não
agir.
CHEGAM as férias escolares, e os filmes para crianças invadem as
salas. Em "Harry Potter e a Ordem da Fênix", pré-adolescentes e
adolescentes encontrarão mais uma chance para sonhar que eles são
órfãos, bruxos e heróicos. Outros preferirão o "Quarteto Fantástico
e o Surfista Prateado" e se imaginarão dotados de poderes
descomunais. Nenhum problema: o devaneio, além de ser prazeroso, é
um dos caminhos pelos quais se enveredam e se desenvolvem nossos
desejos. Mas devanear e desejar não são a mesma coisa. Ao contrário,
devanear pode ser um jeito de contornar o nosso desejo, ou melhor,
de celebrá-lo aparentemente (de olhos abertos ou fechados), mas sem
pagar o preço de sua realização e sem correr o risco do malogro de
nossos esforços. Em suma, sobretudo quando o caminho de nosso desejo
parece árduo e improvável, devaneamos para não agir. Por isso,
gostei de um outro filme para crianças, que estreou na semana
passada, "Ratatouille", de Brad Bird. Essa animação, da Pixar, conta
a história de Remy, um rato que deseja ser chef de cozinha. Se você
fosse um rato e quisesse ser chef, qualquer orientador lhe daria o
conselho seguinte: esqueça e sonhe com algo diferente. Afinal, numa
cozinha, não tem bicho menos indicado do que um rato. A vigilância
sanitária fecha os restaurantes freqüentados por roedores; imagine o
que ela faria com um restaurante capitaneado por um rato. Sua
família também faria o impossível para que você mudasse de idéia.
Rato pode comer restos e lixo ou se insinuar nas despensas e dar
umas mordidas nos suprimentos, mas cozinhar alimentos? Inventar
sublimes combinações de sabores? Preparar amorosamente pratos tão
bonitos quanto suculentos? Isso, convenhamos, não é coisa para rato.
Ora, Remy é cabeça dura. Ele está disposto a desafiar a autoridade
paterna, o conforto do clã e as convenções sociais, que lhe são
francamente desfavoráveis. Não é porque sente o apelo do sucesso ou
imagina futuros lucrativos. É porque cozinhar, para ele, significa
dedicar-se ao que ele sabe fazer, realizar quem ele é. Tempo atrás,
escrevi uma crônica sobre a pouca ousadia dos desejos de nossos
jovens. Pois bem, como antídoto, prescrevo "Ratatouille" a todos,
crianças e pais. Quando pensamos no futuro de nossos rebentos,
temos, em geral, uma visão limitada, preocupada com a
"possibilidade" de seus desejos. Na maioria dos casos, preferimos
que eles tenham desejos "plausíveis". Parece lógico. Mas o problema
é que medimos esse "plausível" a partir da lição de nossos próprios
limites ou fracassos. Isso, sem mencionar nossa vontade de guardar
os filhos por perto e, eventualmente, nossa inveja, que é
inconfessável, mas existe: nem sempre é fácil aceitar que nossos
filhos inventem para si uma vida melhor do que a nossa. O rato que
ambiciona ser chef de cozinha é como o menino que pretende se tornar
escritor, ator, violinista ou astronauta. Em geral, nos filhos que
desejam uma vida que atropelaria a cerca de casa, a resistência dos
pais encoraja uma hipertrofia do devaneio, que compensa o abandono
dos sonhos "extravagantes". Este é o recado: "Seja razoável em seus
desejos e solte-se no devaneio", "Resigne-se ao plausível e, em
compensação, alugue DVDs ("Harry Potter" ou o "Quarteto", por
exemplo) para o fim de semana". Os devaneios do domingo consolarão e
inibirão o anseio "louco" de correr atrás de aspirações incomuns. É
possível entender "Ratatouille" como uma apologia da sociedade
aberta, com oportunidades para todos: até um rato, com dedicação e
persistência, pode se tornar chef. Mas, antes disso, o filme é uma
homenagem à coragem de quem se autoriza a procurar a vida que ele
quer. A história de Remy não inspira devaneios de glória culinária.
Se o filme nos faz sonhar, é com a galhardia de quem não larga o
osso (o queijo, no caso) de seu desejo. Mais uma coisa: "Ratatouille"
é também um excelente filme sobre a arte de cozinhar. É bem provável
que, para quase todos, a primeira gratificação tenha sido oral.
Afinal, o seio e a chupeta nos foram impostos como respostas
universais a qualquer choro. O grande cozinheiro é aquele que, ao
mesmo tempo, evoca em nós a lembrança das primeiras gratificações e
nos surpreende com uma experiência sensorial inédita, inesperada. A
cozinha é isto: a arte de nos dar a satisfação mais primitiva de uma
maneira nova.
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