A dislexia é tema de
novela da Globo.
O papel de disléxica em "Duas Caras" cabe à
atriz Bárbara Borges, que vive Clarissa, uma jovem
que tem o sonho de ser juíza, mas sempre enfrentou
dificuldades leitoras.
Com o apoio da mãe, ela passará no vestibular para o
curso de direito. Assim como Clarissa, os disléxicos
são pessoas normais que, surpreendentemente, no
período escolar, apresentam dificuldades em
leitura e, em geral, problemas, também, com a
ortografia e a organização da escrita. Como ajudar
pais, especialmente mães, de
disléxicos? O presente artigo mostra como os pais,
docentes e
psicopedagogos, conhecendo o cérebro dos disléxicos,
poderão
ajudá-los a ler e compreender o texto lido.
A leitura, como
sabemos, seja para disléxicos ou não, é uma
habilidade complexa. Não nascemos leitores ou
escritores. O módulo fonológico é o único, no genoma
humano, que não se desenvolve por instinto.
Realmente, precisamos aprender a ler, escrever e a
grafar corretamente as palavras, mesmo porque as
três habilidades lingüísticas são cultural e
historicamente construídas pelo homo sapiens.
A leitura só deixa de
ser complexa quando a automatizamos. Como somos
diferentes, temos maneiras diferentes de reconhecer
as palavras escritas e, assim, temos diferenças
fundamentais no processo de aquisição de leitura
durante a alfabetização. Esse automatismo
leitor exige domínios na fonologia da língua
materna, especialmente a
consciência fonológica, isto é, a consciência de que
o acesso ao léxico (palavra ou leitura) exige
conhecimentos formais, sistemáticos, escolares,
gramaticais e metalingüísticos do princípio
alfabético do nosso sistema de escrita, que se
caracteriza pela correspondência entre letras e
fonemas (vogais, semivogais e consoantes). A
experiência de uma alfabetização exitosa é
importante para nossa educação leitora no mundo
povoado de letras, literatura, poesia, imagens,
ócones, símbolos, metáforas e diversidade de mídias
e textos.
A compreensão do
valor da leitura em nossas vidas, especialmente, na
sociedade do conhecimento, é base para
desmistificarmos o conceito
inquietante da dislexia e do cérebro dos disléxicos.
A dislexia não
é doença, mas compromete o acesso ao mundo da
leitura. A dislexia
parece bloquear o acesso de crianças especiais à
sociedade letrada.
Deixa-os, então, lentas, dispersas, agressivas e em
atraso escolar. Os
docentes, pais e psicopedagogos que lidam com
disléxicos devem seguir, então, alguns princípios ou
passos para atuação eficiente com
aqueles que apresentam dificuldades cognitivas na
área de leitura,
escrita e ortografia. Vamos descrever cada um deles
a seguir.
O primeiro princípio
ou passo é o de se começar pela descrição e
explicação da deslexia. Uma criança com deficiência
mental, por
exemplo, não pode ser apontada como disléxica,
porque a etiologia de
sua dificuldade é orgânica, portanto, de natureza
clínica e não
exclusivamente cognitiva ou escolar. Claro, é
verdade que um adulto,
depois de um acidente vascular cerebral, poderá vir
apresentar
dislexia. Nesse caso, trata-se, realmente, de uma
dislexia adquirida,
de natureza neurolingüística e que só com o apoio
médico é que
podemos intervir, de forma plurisdisciplinar e,
adequadamente, nesses
casos.
Assim, tanto para a
dislexia desenvolvimental (também chamada
verdadeira porque uma criança já pode herdar tal
dificuldade dos
pais) como para a dislexia adquirida (surge após um
AVC ou traumatismo), importante é salientar que os
docentes, pais e psicopedagogos, especialmente estes
últimos, conheçam melhor os
fundamentos psicolingüísticos da linguagem escrita,
compreendendo,
assim, o processo aquisição da habilidade leitora e
os processos psicológicos envolvidos na habilidade.
Realmente, sem o conhecimento
da arquitetura funcional, do que ocorre com o
cérebro dos disléxicos,
durante o processamento leitor, toda intervenção
corre risco de ser
inócua ou contraproducente.
Os processos leitores
que ocorrem nos cérebros dos leitores, proficientes
ou disléxicos, podem ser descritos através de quatro
módulos cognitivos da leitura: (1) módulo
perceptivo, como o nome sugere, refere-se à
percepção, especialmente a visual, importante fator
de dificuldade leitora; (2) módulo léxico, nesse
caso, refere-se, por exemplo, ao traçado das letras
e a memorização dos demais grafemas da língua (por
exemplo, os sinais diacríticos como til, hífen
etc.); (3) módulo sintático, este, tem a ver com a
organização da estruturação da frase, a criança
apresenta dificuldade de compreender como as
palavras se relacionam na estrutura das frases (4)
módulo semântico, este, diz respeito, pois, ao
significado que traz as palavras nos seus morfemas
(prefixos sufixos etc.)
Não é uma tarefa
fácil conhecer o cérebro dos disléxicos. Por
isso, um segundo passo é o aprofundamento dos
fundamentos
psicolingüísticos da lectoescrita. A abordagem
psicolingüística
(associando a estrutura lingüística dos textos aos
estados mentais do
disléxico) é um caminho precioso para o entendimento
da dislexia, uma vez que apresenta as conexões
existentes entre questões pertinentes ao
conhecimento e uso de uma língua, tais como a do
processo de aquisição de linguagem e a do
processamento lingüístico, e os processos
psicológicos que se supõe estarem a elas
relacionados.
Aqui, particularmente é bom salientar que as
dificuldades lectoescritoras são específicas e
bastante individualizadas, isto é, os disléxicos são
incomuns, diferentes, atípicos e individualizados
com relação aos demais colegas de sala de aula bem
como aos sintomas manifestados durante a aquisição,
desenvolvimento e processamento da linguagem
escrita.
Nessas alturas, todos
que atuam com os especiais devem pensar o que
pode estar ocorrendo com os disléxicos em sala de
aula. Os métodos de alfabetização em leitura levam
em conta as diferenças individuais?
Os métodos pedagógicos, com raras exceções, se
propõem a ser
eficientes em salas de crianças ditas normais, mas
se tornam ineficientes em crianças especiais. Por
isso, cabe aos docentes, em
particular, e aos pais, por imperativo de
acompanhamento de seus
filhos, entender melhor sobre os métodos de estudos
adotados nas
instituições de ensino. Os métodos de alfabetização
em leitura
são determinantes para uma ação eficaz ou ineficaz
no atendimento
educacional especial aos disléxicos, disgráficos e
disortográficos.
A dislexia é uma dificuldade específica em leitura,
e como tal, nada
mais criterioso e necessário do que o entendimento
claro do processo
da leitura ou do entendimento da leitura em
processo.
Não menos importantes
do o entendimento dos métodos de leitura,
adotados nas escolas, devem ser objeto de
preocupação dos educadores, pais e psicopedagogos,
as questões conceituais, procedimentais e
atitudinais sobre a dislexia, disgrafia e
disortografia. O que pensam as escolas sobre as
crianças disléxicas? O que sabem seus professores e
gestores educacionais sobre dislexia? Mais do que
simples rótulos das dificuldades de aprendizagem da
linguagem escrita, a dislexia é uma síndrome ou
dificuldade revestida de conceitos lingüísticos,
psicolingüísticos, psicológicos, neurológicos e
neurolingüísticos fundamentais para os que vão atuar
com crianças com necessidades educacionais
especiais. Reforça-se, ainda, essa necessidade de
compreender, realmente, o aspecto pluridisciplinar
da dislexia, posto que muitas vezes, é imperiosa a
interlocução com outros profissionais que cuidam das
crianças, como neuropediatras, pediatras, psicólogos
escolares e os próprios pais das crianças.
Na maioria dos casos
de dislexia, disgrafia e disortografia, a abordagem
mais eficaz no atendimento aos educandos é a
psicopedagógica (ou psicolingüística, para os
lingüistas clínicos)
em que o profissional que irá lidar com as
dificuldades das crianças
aplicará à sua prática educacional aportes
teórico-práticos da
psicopedagogia clínica ou institucional aliados à
pedagogia e à
psicologia cognitiva e à psicologia da educação. São
os psicolingüistas que se voltam para a explicação
da dislexia e suas dificuldades correlatas
(disgrafia, dislexias). Hipóteses como déficits de
memória e do princípio alfabético (fonológico) são
apontados, pelos psicolingüistas, como as principais
causas da dislexia.
O terceiro passo para
os que querem entender mais sobre dislexia é dar
especial atenção à avaliação das dificuldades
lectoescritoras. A
avaliação deve ser trabalhada como ato ou processo
de coletar dados a
fim de se melhor entender os pontos fortes e fracos
do aprendizado da
leitura, escrita e ortografia dos disléxicos,
disgráficos e disortográficos. Enfim, atenção dos
psicopedagogos deve dirigir-se à avaliação das
dificuldades em aquisição da linguagem escrita.
Nesse sentido, um caminho seguro para a avaliação da
dislexia,
disgrafia e disortografia é pela via do
reconhecimento da palavra. O
reconhecimento da palavra começa pela identificação
visual da
palavra escrita. Depois do reconhecimento da palavra
escrita, deve ser
feita avaliação da compreensão leitora,
especialmente no tocante à
inferência textual, de modo que levando a efeito
tais procedimentos,
ficarão mais explícitas as duas etapas fundamentais
da leitura e de
suas dificuldades: decodificação e compreensão
leitoras.
O quarto e último
passo para o desenvolvimento de estratégias de
intervenção nos educandos com necessidades
educacionais especiais em leitura, disgrafia e
disortografia é o de observar qual dos módulos
(perceptivo, léxico etc.) está apresentando déficit
no processamento
da informação durante a leitura. Portanto, é
entendermos como o
cérebro dos disléxicos funciona durante o ato
leitor. Neste quarto
passo, é imprescindível um recorte das dificuldades
leitoras. A
dislexia não é uma dificuldade generalizada de
leitura, ou seja, não
envolve todos os módulos do processo leitor.
Descoberto o módulo
que traz carência leitora, através de testes
simples como ditado de palavras familiares e
não-familiares, leitura
em voz alta, questões sobre compreensão literal ou
inferência
textual, será mais fácil para os psicopedagogos, por
exemplo, atuar
para compensar ou sanar, definitivamente, as
dificuldades leitoras que
envolvem, por exemplo, aspectos fonológicos da
decodificação leitora
e da codificação escritora: o princípio alfabético
da língua materna, isto é, a correspondência
letra-fonema ou a correspondência fonema-letra.
Se o que está afetado
refere-se ao campo da compreensão, os
psicopedagogos poderão propor atividades com
conhecimentos prévios para explorar a memória de
longo prazo dos disléxicos que se baseia no
conhecimento da língua, do assunto e do mundo
(cosmovisão). Quando estamos diante de crianças
disléxicas com as dificuldades relacionadas com a
compreensão estamos, decerto, diante de casos de
leitores com hiperlexia, parafasia, paralexia ou, se
estão, também, superpostas dificuldades em escrita,
ao certo, estaremos diante de escritores também
hiperlexia, parafasia, paragrafia, termos clínicos,
mas uma vez explicados, iluminarão os psicopedagogos
que atuam com disléxicos e disgráficos. A paralexia
é dificuldade de leitura provocada pela troca de
sílabas ou palavras que passam a formar combinações
sem sentido. A parafasia é distúrbio da linguagem
que se caracteriza pela substituição de certas
palavras por outras ou por vocábulos inexistentes na
língua. A ciência e a terminologia, realmente,
apontam, mais, claramente, as raízes dos problemas
ou dificuldades na
leitura, escrita e ortografia.
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Vicente Martins é
professor da Universidade Estadual Vale do
Acaraú(UVA), em Sobral, Estado do Ceará. Contato:
http://vicente.martins.sites.uol.com.br/ |