As vicissitudes da paixão Camille Claudel e Auguste Rodin José Outeiral e Luiza Moura
“Há sempre algo de ausente que me atormenta” Trecho de uma carta de Camille Claudel a Auguste Rodin
Auguste Rodin, escultor francês, nascido em 1840. Camille Claudel, escultora francesa, nascida em 1864. Ele, de origem humilde, recebeu reconhecimento ainda em vida, tornou-se um homem influente em seu próprio tempo. Ela, proveniente de família burguesa e de bom nível cultural, nunca obteve projeção durante sua vida e jamais conseguiu se sustentar com seu próprio trabalho.
Rodin, falecido em 1917, recebeu um sepultamento com glórias. Camille, falecida em 1943, após trinta anos de internação em um hospício, teve um funeral anônimo e sua sepultura desapareceu...
Porém, em determinado momento de suas histórias, a vida destes dois gênios se entrecruzou, de maneira arrebatadora, apaixonada, influenciando definitivamente suas obras e seus destinos. As esculturas muitas vezes se confundiram e em algumas delas a vida se plasmou e se revelou, com todos os seus avatares e sofrimentos, especialmente nas criações de Camille.
Em 1880, a família de Camille mudou-se para Paris, justamente com o objetivo de impulsionar a carreira da jovem escultora. Rodin que viria a ser seu professor, nesta época, com 41 anos, era um artista conhecido por muitos, mas reconhecido por poucos. Aos 17 anos, a jovem Camille expõe no Salão das Artes “A Velha Helena”, busto de uma senhora de olhar firme e terno.
Pouco tempo depois, o mestre e a aluna, tornam-se amantes. Uma relação intensa e desconfortável para ambos. Camille se dispõe à uma entrega total a Rodin, que apenas parcialmente corresponde a esta paixão. Rodin vivia com uma mulher há aproximadamente vinte anos, Rose, e com ela tinha um filho, Camille sofria a desaprovação total de sua família quanto a esta relação, chegando, inclusive, a ser expulsa da casa dos seus pais.
“O Beijo” é uma das primeiras esculturas de Rodin inspiradas em Camille, obra que esquenta as especulações nos salões parisienses em torno do romance dos dois. Camille converte-se em uma dedicada operária de Rodin. Ao seu lado, lança-se na execução de “As Portas do Inferno” e de “Os Burgueses de Calais”. Camille esculpe as mãos e os pés dos grupos, além disto, é a responsável pela pesquisa dos perfis dos personagens. Rodin não reconhece a contribuição de sua aluna e amante.
Rodin, além de um genial artista, revela-se um homem sagaz, mestre na auto-promoção, e, assim, impõe-se como uma personalidade poderosa. A relação entre Rodin e Camille, porém, mantinha-se na clandestinidade. Seria difícil definir qual anonimato incomodava mais Camille, o que dizia respeito à sua obra ou o que se referia ao romance com August Rodin.
O estremecimento entre eles começa a ficar visível quando Camille acusa Rodin de plágio: Em 1888, Camille ganha menção honrosa com “O Sakuntala”, que representa um casal que se abraça numa tocante entrega amorosa. Um ano depois, Rodin cria “O Ídolo Eterno”, onde um homem e uma mulher, posicionam-se de forma similar à dupla de Camille, porém, de maneira mais terna do que apaixonada.
A representação do vazioÉ interessante como a ruptura amorosa entre Rodin e Camille se reflete claramente nas esculturas da artista, especialmente em “O Deus que Voou” ( Rodin que se afasta diria um psicanalista afoito ), a “A Idade Madura” e “A Suplicante”. Em “O Deus que Voou”, Camille consegue retratar a ausência, tema que muito a acompanha. “Há sempre algo de ausente que me atormenta”. Nesta obra, uma jovem ergue os braços em direção ao céu, num misto entre implorar e alçar vôo. Chama a atenção o ventre crescido, numa jovem esbelta, sugerindo a gravidez interrompida pelo abortamento, e à qual Rodin se fez ausente. Além disso, sua cabeleira, à semelhança de “Cloto” parece querer atacá-la. “A Idade Madura” é um grupo de três protagonistas, em que o centro é vazio e os três tomam lugar em diferentes níveis. Uma jovem ajoelhada está abaixo e mais distante, um homem maduro no plano médio e uma velha no plano mais alto, parece vitoriosamente estar levando o homem consigo. Esta obra que muito desagradou Rodin, que se sentiu exposto, retrata, talvez, o sentimento de derrota de Camille frente à Rose, à sua mãe e à passagem do tempo e à morte. A jovem ajoelhada volta-se para o homem e suplica, mais inclinada do que a retratada em “O Deus que Voou”. “A Suplicante”, por sua vez, é o detalhe da jovem que compõe “A Idade madura”. Novamente o ventre da jovem está crescido, a gravidez é um tema que se repete em sua obra e talvez reflita uma esperança de se conectar com a feminilidade, com a experiência de ser e substituir a ausência por uma presença. Gravidez que nunca se realizou, aborto que a persegue. As diferentes versões de “A Idade Madura” nos permitem acompanhar o afastamento definitivo dos amantes. Cada vez mais o homem se inclina e é alçado pela mulher mais velha e se afasta da moça que, suplicante, cada vez mais se mostra num plano oblíquo, instável, quase que prenunciando a queda psíquica que acontecerá em pouco tempo.
Pouco depois deste episódio, os dois se afastam. Com isto, os estilos individuais se salientam. Ainda que ambos imprimam em suas obras verdade, força e vivacidade intensas, fazendo com que o corpo, com seus músculos, vincos, flacidez, torne-se uma perfeita via de comunicação dos sentimentos e paixões humanas; grandes diferenças tornam-se visíveis.
A arte de Rodin parece rasgar a terra e nascer de suas profundezas, são gigantes que surgem imponentes ou angustiados, sempre assustadoramente presos ao chão. A obra de Camille, por outro lado, eleva-se ao céu, é fluída, plena de movimento, como que desmaterializando-se e sugerindo um equilíbrio instável, oblíquo e desconcertante.
Além disto, Rodin foi um criador de obras de grande escala e, muitas vezes, com um cunho político e ideológico, Camille era uma artista de interiores e das interioridades.
Alguns comportamentos bizarros de Camille vieram se manifestando ao longo dos anos, mas, no início do novo século, eles se agravam, ela passa a destruir e enterrar suas esculturas. No ano de 1913, é internada num sanatório e lá permanece, durante 30 anos, até sua morte. Durante o exílio de Camille, Rodin casa-se oficialmente com a mãe de seu filho.
Em 1932, quinze anos após a morte de Rodin, Camille recebe a seguinte carta do seu amigo e incentivador, Eugène Blot:
“(...) Já não sabia de seu paradeiro... No mundo matreiro da escultura, Rodin, você, possivelmente mais três ou quatro, tinham introduzido a autenticidade, isso não se esquece.(...) Num dia em que Rodin me fazia uma visita, vi-o subitamente imobilizar-se diante desse retrato (“A Suplicante”, Claudel, 1900), contemplá-lo, acariciar suavemente o metal e chorar. Sim, chorar. Como uma criança. Faz quinze anos que ele morreu. Na realidade, ele nunca amou ninguém, senão você, Camille, posso dizê-lo hoje. Tudo o mais - essas aventuras lamentáveis, esta ridícula vida mundana, ele que no fundo permanecia um homem do povo - era a válvula de escape de uma natureza de excessos. Oh! Sei bem, Camille, que ele a abandonou não procuro justificá-lo. Você sofreu muito por ele. Mas não retiro nada do que acabo de escrever o tempo reporá tudo no seu lugar.”
Eugène Blot talvez tivesse razão... O que teria levado esta jovem e talentosa artista permanecer à sombra de seu mestre e amante, até a queda que ocorreu com a separação? Ela permaneceu sem criar os últimos trinta anos de sua vida em um hospício. O que a levou a não seguir com o breve romance com o jovem e talentoso Claude Debussy queaté o final de sua vida manteve sobre o piano a escultura “A Valsa” de Camille que lhe havia oferecido. Por quê a despeito da oposição de sua família, do irmão Paul e das atitudes do próprio Rodin, ela retornava sempre para este homem? É possível se compreender a criação de um artista pela sua história de vida? Camille Claudel,assim como Frida Kahlo, teria expressado seu sofrimento através da criação artística? Poderá a arte dar suporte não só à vida e à criatividade, mas também à dor e a fragmentação psíquica? Esta é certamente uma questão para ser pensada e onde, como sugere Blanchot, a pergunta seja mais importante que a resposta. O leitor está convidado a dividir conosco estas questões.
José Outeiral e Luíza Moura são psicanalistas e autores do livro “Paixão e Criatividade: Frida Kahlo, Camille Claudel e Coco Chanel” ( Editora Revinter, segunda edição, 2004 )
|