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Há poucos dias, na sala de aula, um
aluno perguntou o que acho sobre o confuso caso do
padre Júlio Lancelotti, envolvido como vítima de
extorsão de um lado e suspeito de escândalo sexual
de outro. Posso estar errado, mas pressenti na
pergunta a indisfarçável malícia de quem queria
colocar o professor numa ‘saia justa’.
Comecei dizendo que, em primeiro
lugar, tenho horror a essa verdadeira praga que é o
‘achismo’. Qualquer que seja o tema tem sempre gente
achando alguma coisa. Mesmo sem nunca ter procurado.
Se a pergunta for feita em frente a um microfone ou
câmera então, vira festa. Qualquer Zé Mané vira
especialista no assunto.
Sem ser ingênuo, nem manipulado,
muito menos alienado, respondi ao meu aluno que
tenho acompanhado o caso pela mídia e, mais, busquei
informações também através de amigos (muitos e
confiáveis) que conhecem de perto os envolvidos
neste triste episódio. Todos que consultei, pessoas
sérias, que conhecem pessoalmente o padre Júlio,
foram unânimes e veementes em defendê-lo. |
Tenho especial interesse no assunto também
pelo fato de que sendo, como eu, membro da Igreja, povo de
Deus, o padre Júlio é meu irmão. E em relação aos meus
irmãos tenho responsabilidades. A primeira delas é amá-los
e, no amor, rezo por ele, sem abrir mão do olhar crítico,
equilibrado, aberto e verdadeiro.
E é justamente esse olhar crítico que
primeiro analisa o papel da mídia, que tanto pode ser sóbria
e cautelosa, o que é mais raro, quanto praticar a mais
evidente e grotesca manipulação, como tem feito, por
exemplo, os veículos de comunicação ligados à Igreja
Universal, do bispo Macedo. Por trás de cada manchete
escandalosa sempre estão interesses ainda mais
escandalosos...
Mas, o equilíbrio do olhar trás também a
preocupação com o outro extremo, o que pede a absolvição
prévia, sem questionamentos.
Não conheço pessoalmente o padre Júlio.
Conheço e admiro o seu trabalho. Mas, e é duro admitir, se
há uma coisa que a vida me ensinou é que podem ser
surpreendentes os labirintos da mente humana, das nossas
fragilidades, dos nossos anjos e demônios interiores. Vejam
o caso do Rabino Sobel. Um homem com aquela estatura moral,
com a biografia que tem, constrangedoramente flagrado
furtando gravatas...
Calma, sei separar tranquilamente uma coisa
da outra. Sei a diferença entre o sentir, fruto de
circunstâncias que nem sempre controlamos, e o consentir,
fruto da nossa vontade e liberdade. O desequilíbrio psíquico
ou químico (por medicamentos) que levou Sobel àquele momento
de transgressão (que ele, humildemente, assumiu) não
invalida sua rica e admirável história pessoal, sua vida
cheia de exemplos de dignidade. Mas nos convida a pensar
sobre nossas fragilidades.
Meu sentimento primeiro é acreditar que o
padre Júlio é vítima não só de extorsão, mas da sua própria
bondade e crença no ser humano. Quem sou eu para avaliar o
momento, a frágil fronteira em que o padre Júlio, na sua boa
intenção, no seu desejo de recuperar um irmão, se viu
prisioneiro de uma trama diabólica? Provavelmente nunca
iremos saber.
Mas para o grosso da mídia ou para a mídia
grossa isso pouco importa. Importa a notícia espetacular
para ser escancarada na primeira página. É a velha história
que corre nas redações; se um cachorro morde um homem, nada
a noticiar (a não ser que seja um pitbull assassino), mas se
um homem morde um cachorro a manchete está garantida e seus
personagens são atirados na vala comum do noticiário sórdido
e apodrecido do qual se alimentam os pseudo-repórteres, qual
urubus em volta da carniça..
E quando a notícia vira espetáculo, quem
sofre é a verdade..
Para a mídia ficou fácil, hoje, fazer esse
tipo de acusação espetacular. Ficou fácil 'colar' na imagem
de um padre o rótulo de pedófilo, de maníaco sexual. E nós,
Igreja, temos parte da responsabilidade nisso quando, em
algumas situações, tentamos empurrar sujeira para debaixo do
tapete. A Igreja nos Estados Unidos que o diga.
E é justamente esse acobertamento dos desvios
de uma minoria, esse corporativismo silencioso, perverso e
equivocado que também contribuiu para que cheguemos ao
estado atual das coisas. A desconfiança estando
estabelecida, basta denunciar. Escândalo e ibope garantidos.
Nesta trilha, recentemente o colunista
Arnaldo Jabor escreveu um artigo contando o assédio sexual
que teria sofrido de um padre, quando aluno de um colégio
católico, no Rio de Janeiro. No texto, concluía que o
celibato é um desvio sexual, uma aberração. Mais que isso,
todo religioso celibatário é um tarado em potencial.
O artigo saiu nos maiores jornais do país,
roda até hoje na internet (eu mesmo o recebi de três fontes
diferentes), foi lido pelo Brasil inteiro, virou motivo de
piada, chacota e conversa de botequim. E nós aceitamos
calados, passivos, acríticos, ajudando a formar esse
perverso senso comum.
A mesma coisa em relação ao Diogo Mainardi,
na Veja (esse já está se desmoralizando a si mesmo, até por
falta de quem desmoralizar). Na sua vala comum, ou melhor,
na sua coluna semanal condenou previamente o padre Júlio,
baseado no argumento supremo e inquestionável de que o mesmo
só pode ser culpado, uma vez que é eleitor do Lula.
E o mais triste nessa história é que, uma vez
estabelecida a desconfiança prévia, formada a tal de opinião
pública, um 'discurso espontâneo' se encarrega de reescrever
o episódio a partir justamente desse senso comum, infiltrado
no subconsciente coletivo, injetado como um veneno para o
qual não há antídoto.
E aí, a triste constatação; inocente ou
culpado, o padre Júlio, para a mídia e para a massa, já está
condenado.
Meu sentimento inicial, repito, é de que o
padre Júlio Lancelotti é inocente. Se o desenrolar das
investigações (outro problemão no Brasil; quem investiga?
como investiga? para quem investiga?...) mostrar que eu
estava errado, não se reduz em nada a minha admiração pelo
seu trabalho pastoral, pela sua postura como cidadão e
sacerdote a serviço dos mais excluídos entre os excluídos.
Mas a curiosidade meio sacana do meu aluno me
fez pensar no grande e manipulado cenário em que nos
movemos. Nos interesses envolvidos. E diante deles, não
podemos ser ingênuos nem injustos. Não podemos condenar nem
absolver previamente. Podemos e devemos, sim, como cristãos,
amar sempre. E no amor, perdoar, restaurar, reintegrar,
reconstruir, reedificar, reafirmar.
Uma imagem ou uma vida.
Eduardo Machado
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