Por : José Pacheco
Algures, em 6 de Setembro de 2007,
Querida Alice,
No tempo em que os teus olhos se habituavam ao céu do Sul da
tua infância, o teu avô atravessava esse mesmo céu no ventre
de um pássaro de metal, respondendo aos apelos de aves
sequiosas do fermento que faz levedar os sonhos. Nesse
tempo, também as palavras voavam, mas no ciberespaço, nas
asas que homens de engenho lhes deram. De modo que, cada vez
que regressava do outro lado do oceano, já as ideias e
sentimentos de muitos e maravilhosos pássaros haviam chegado
à minha caixinha do correio electrónico (correio electrónico
era um utensílio que usávamos no tempo em que vieste ao
mundo). Dou-te a ler pedacinhos de uma dessas mensagens:
“Caro Zé, (…) eu continuo na minha pesquisa, juntei algumas
coisas, servirão bastante para colocar "a pulga atrás das
orelhas dos professores". Quem sabe eles não dão o famoso
pulo do gato e reinventam formas de compreender o que está
acontecendo com seus alunos? Veremos. É impressionante como
os dirigentes dessa educação brasileira ainda não perceberam
por onde se vai a Roma! É mexendo com o corpo e a alma dessa
criançada que eles vão. Só o governo é que não vê.
Finalmente digitei o texto. Aí segue.
A “escola de uma nota só” só recebe alunos que toquem a
escala de dó. Os professores só entendem quem canta num
mesmo tom. Essa escola não consegue entender quem aprendeu
música na rua, no campo, ou quem não aprendeu música
nenhuma. Felizmente, alguns professores já aprenderam a
ouvir diferentes melodias e sensatamente construíram outros
sons. Mesmo assim, para a grande maioria a demais música
ainda soa incompreensível, necessitando de um ajuste na
melodia. Dizem que estas crianças têm uma forma diferente de
aprender a cantar e até – quem sabe! – de pensar.
Falam de uma dificuldade articulatória que, por conta desta
palavra feia, é necessário um método todo especial. Tenta-se
juntar essas crianças, se possível reagrupando-as num mesmo
tom, para que uma educação especial seja cuidadosamente a
elas ministrada. Nela se prepara uma pauta especial e um
maestro especializado. Vão continuar com a música meio fora
de tom, mas não haverá afinados por perto para provocar,
para mostrar o quanto eles desafinam. Mas para muitos
educadores esta história está tomando outro rumo. Educadores
como nós, que acreditamos em uma educação especial para
todas crianças, juntas, trabalhando as diferenças e
igualdades. Optando pela vida tal qual ela é, sem redomas.
Estamos lutando pela inclusão de todos os alunos com alguma
deficiência, mas não nos esquecemos milhares de alunos que
são expulsos dessa mesma escola, que, insistimos, é para
todos. Nossa escola não está preparada nem para as crianças
consideradas normais, muito menos para as pessoas com
deficiência. Por que queremos uma escola onde afinados e
desafinados façam parte da mesma orquestra? É porque
acreditamos que todas as crianças têm o direito a crescer em
ambientes o mais livres possível e juntas, independentemente
de raça, credo ou capacidade intelectual. Queremos uma
escola preparada para ouvir todas as músicas de variados
tons. É nela que realizamos nosso exercício de cidadania,
onde vivenciamos e incorporamos os valores sociais e morais,
através da cooperação entre os indivíduos. Onde, de facto, a
afinação da orquestra acontece. E, como já dizia o poeta,
“no peito dos desafinados também bate um coração.”
Esta sensível mensagem foi-me enviada pelo beija-flor que
habitava o frágil corpo de uma mulher, e terminava assim:
“Um grande beijo e toda a paz para você. Nos veremos.
Susana.”
“Nos veremos” – disse a Susana. Mas não mais nos voltaríamos
a ver. Decorridos dois meses, esse frágil beija-flor iria
deixar o nosso mundo mais pobre pela sua ausência. A Susana
soube ocultar a doença que a condenava a partir demasiado
cedo. Até ao fim, pôs entusiasmo em tudo o que fazia. Até ao
fim, buscou a “escola policromática” a que se referiu na
interpelação que me fez no decurso de uma conferência.
No final dessa “fala” (como chamam às conferências no
Brasil) que o teu avô fez sobre a escola das aves, disse-me
que havia reparado no modo peculiar com que eu me despedia
das pessoas: “Até logo”! Sublinhou que um “até logo” tanto
poderia significar que nos voltaríamos a encontrar mais
logo, nesse mesmo dia, ou que nos encontraríamos mais tarde…
ou na eternidade.
Sentindo aproximar-se o tempo de partir, a Susana vivia
intensamente aquela despedida, como se fosse a derradeira.
Após um longo silêncio, de um olhar de dizer e não dizer,
fitou-me longamente e repetiu a saudação: “Até logo”! Que
distraído eu estava! Absorto nas coisas que consideramos
importantes, ignorante do drama, respondi, natural e
laconicamente: “Até logo”!
Há humanos seres, querida Alice, que vivem como pássaros.
Que, de tão belos, espalham em seu redor um doce perfume que
os resgata da lei da morte, uma fragrância que fica a pairar
sobre a terra dos pássaros muito para além do tempo de
viver. A Susana partiu discretamente, numa migração sem
regresso. Por ter vivido em harmonia com a respiração dos
pássaros, mora agora numa estrela, ou habita a grande
catedral do espírito. As notas da sua escala em arco-íris,
harmoniosamente se subdividiram em meios e quartos de tom.
Multiplicaram-se. Da claridade da sua alma transmigrada
partiram raios de luz em todas as direcções, num S.O.S.
captado por corações puros de pássaros disponíveis para
entoar novas melodias e interrogar as “escolas de uma nota
só”.
Até logo!
O teu avô José
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