Sérgio
Salomão Shecaira
Prof.
Associado da USP
Ex-presidente do IBCCRIM
Vice-Presidente do GB-AIDP
Francis
Galton achava que os seres humanos eram criaturas surgidas
diretamente da natureza, produtos que caíram da esteira
rolante de uma imensa fábrica darwiniana, conseqüência
intelectual e moral da natureza, não da formação. Ele adotou
essa crença determinista e, em 1901, o primo de Darwin
começa uma cruzada grandiosa, um movimento que era, segundo
ele “como uma sociedade missionária, com seus missionários,
que procediam com um entusiasmo para melhorar a raça”. O
plano de Galton passou a chamar-se eugenia[1],
termo por ele criado em 1883. As tentativas de proibição de
casamentos inter-raciais, as restrições que incidiam sobre
alcoólatras, epilépticos e alienados, visavam, segundo a
ótica da época, a um aprimoramento das populações. Galton
propunha o controle das licenças de casamento. “Proibindo
uniões eugenisticamente defeituosas, e promovendo a união de
parceiros bem-nascidos, acreditava que ‘o que a natureza faz
de maneira cega, lenta e impiedosa, o homem deve fazer de
modo previdente, rápido e bondoso’.”[2]
Os pensamentos de Galton repercutem nos
Estados Unidos mais do que em qualquer lugar do mundo. Em
1905, ambas as casas da legislatura na Pensilvânia
promulgaram uma “Lei para prevenção da Imbecilidade”, vetada
pelo Governador Samuel Pennypacker. Em fevereiro de 1906, no
entanto, o Senado de Indiana marca a história da medicina ao
tornar-se a primeira jurisdição do mundo a legislar sobre a
coerção de pacientes deficientes mentais, dos moradores de
seus asilos de pobres e de seus prisioneiros. Já em 1909,
três Estados americanos haviam ratificado a esterilização
eugenista iniciada em 1906. O Estado de Washington visava
aos criminosos contumazes e estupradores, ordenando a
esterilização como um castigo para a prevenção da
procriação. A Califórnia permitia a castração ou a
esterilização de presos e crianças deficientes mentais. Iowa
permitia a cirurgia em criminosos, idiotas, deficientes
mentais, imbecis, ébrios, drogados, epilépticos além dos
pervertidos morais e sexuais.[3]
Estado a Estado, nascem legislações eugenistas,
estabelecendo critérios semelhantes, ainda que distintos,
para as práticas racistas da eugenia. Em 2 de maio de 1927,
em julgamento na Suprema Corte americana, em decisão da
lavra no Juiz Oliver Wendel Homes Jr., autorizou-se a
esterilização de Carrie Buck nos seguintes termos: “O
Julgamento acolhe os fatos que foram declarados formalmente,
e que Carrie Buck é a mãe provável e potencial de
descendentes inadequados, igualmente afligidos, que ela pode
ser sexualmente esterilizada sem detrimento de sua saúde
geral, e que seu bem-estar e o da sociedade serão promovidos
por sua esterilização... É melhor para todos no mundo que,
em vez de esperar para executar descendentes degenerados por
crimes, ou deixar que morram de fome por causa de sua
imbecilidade, a sociedade possa impedir os que são
claramente incapazes de continuar a espécie. O princípio que
sustenta a vacinação compulsória é
amplo o bastante para cobrir o corte das trompas de falópio.
Três gerações de imbecis são suficientes.”[4]
Em 1940, não menos de 35.878 homens, mulheres e crianças,
loucos, criminosos e vagabundos tinham sido esterilizados.
A prática americana é copiada por vários
países europeus. Em 1928, a primeira lei suíça de
esterilização foi ratificada no Cantão de Vaud. A Noruega
promulgou sua lei de esterilização em 1934, só a revogando
em 1977. A Suécia também promulgou sua lei autorizando
cirurgias no ano de 1934. Não é difícil concluir de onde
Hitler tirou suas leis nazistas que produziram
esterilizações em massa de seus opositores. A primeira lei
foi decretada em 14 de julho de 1933: o Estatuto do Reich,
Parte I, nº 86, a lei para a Prevenção da Progênie
Defeituosa. Era uma lei de esterilização em massa e
compulsória. Alcançava deficientes mentais, esquizofrênicos,
epiléticos, surdos, cegos, alcoólicos, dentre outros.
Pensamentos racistas foram dominantes por um
longo período também entre nós. Afrânio Peixoto, por
exemplo, foi um moderado crítico de Lombroso, embora tenha
adotado muitas de suas idéias. Baiano de nascimento, foi
catedrático de Higiene e Medicina Legal na Faculdade de
Medicina e na Faculdade de Direito da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, onde organizou, dirigiu e professou o
primeiro curso de Criminologia em moldes de pós-graduação
(1932) [5]. Ferri
a ele se referiu afirmando que tinha adesões pelo menos
relativas ao pensamento Positivista
[6]. Afrânio
Peixoto afirmava que os criminosos natos constituíam o tipo
mais frisante, o âmago das idéias positivistas. Tal qual
Garofalo, defensor das diferenças e influências das raças
nas decisões que levam as pessoas aos atos criminais
[7] (o que o
levou a defender a pena de morte para os criminosos),
Afrânio Peixoto foi defensor da eugenia. “Para prover a isso
a eugenia, a boa geração, a boa criação que reúne e propaga,
depois de investigar para resolver, os problemas biológicos
da gestação, para que se produzam seres sadios e válidos,
dotados de todas as qualidades requeridas a um perfeito
exemplar humano. É um mundo novo, entrevisto e esperançado:
Renato Kehl tem sido aqui o paladino da causa; aos seus
livros documentados envio os estudiosos”[8]
Será que tal prática, corriqueira no passado,
entronizada no pensamento científico, foi banida do nosso
cotidiano?
Contemporaneamente, o racismo tem sido
identificado por inúmeros estudos, de diferentes fontes. São
os cruzamentos de dados que envolvem analfabetismo, média de
salário percebida por brancos e negros, número de negros que
têm acesso à Universidade, disparidade dos índices de
mortalidade infantil, diversidade dos dados no que concerne
a quantos são mortos “em confronto” com as polícias
estaduais etc. [9]
. Mas parece que, mesmo hoje, os operadores do direito não
se convenceram disso. Lilia Schwarcz tem curiosa observação
sobre o tema. Diz que, quando pesquisas são feitas junto à
população em geral, chega-se à seguinte perplexidade:
pergunta: a) Você é preconceituoso? 99% das pessoas
responderam não; b) Você conhece alguém preconceituoso? 98%
das pessoas responderam sim!
Pode parecer que tais práticas não produzam
conseqüências no âmbito do Judiciário. Ledo engano. O
próprio Boletim do IBCCRIM já fez uma pesquisa constatando
tal fato.[10]
Vejamos dois exemplos mais recentes de
práticas discriminatórias no seio do Judiciário Paulista:
Juiz: O senhor tem o
direito de permanecer calado, mas devo adverti-lo que o seu
silêncio pode ser considerado em seu desfavor no momento da
sentença.
Depoente: Sim senhora.
J: É verdade que o senhor
estava portando uma arma?
D: Não senhora, não é
verdade.
J: Por que será que estão
acusando o senhor?
D: Na verdade eu estava
na festa e um policial apareceu falando que a arma era
minha.
J: Por que esse policial
não foi na minha casa dizendo que a arma é minha?
...
J: O senhor trabalha em
que?
D: Sou escritor e
declamador
...
J: Eu só não entendi por
que será que os policiais estão mentindo?
D: Estão mentindo.
J: Por que iam fazer isso
logo com o senhor que é compositor e é declamador?
D: Até o momento da
acusação acho que não sabiam, acredito que é preconceito,
que sou negro.
J: Só porque o senhor é
negro?
D: e o meu cunhado (um
dos co-réus)
J: O M (outro co-réu) não
é. Preconceito?
D: Eu acredito isso, que
a palavra que eu ouvi é “algema esse ‘negão’”.
J: Preconceito não é.
Deve ter outro motivo, porque o M. não é negro.[11]
“O primeiro reconhecimento deu-se por
fotografia (fls.79, cit), embora a defesa o impugne era
confiável. Foto do apelado está a fls. 84, por ela se
verificando possuir traços bem definidos, diversos do
universo de ‘morenos’ com feições negróides que inunda a
marginalidade.”[12]
Acho que Ionesco tinha razão quando
asseverava: “somente as palavras contam, o resto é
falatório”.
Outros acontecimentos sociais também
demonstram a prática diuturna do racismo. Vejamos um caso
recente: Flávio Ferreira Santana tinha 28 anos. Era negro e
dentista. Cinco membros da Polícia Militar de São Paulo
desconfiaram que ele assaltara um comerciante. Atiraram
primeiro —dois tiros— e perguntaram depois. Pontaria
certeira, morte imediata. O pai, Jonas, negro como o filho e
ex-membro da corporação, como os assassinos, conhecedor do
cotidiano do policiamento ostensivo em São Paulo, foi o
primeiro a asseverar: “tenho certeza de que se ele fosse
branco não teriam atirado no meu filho”.
O primeiro passo para que se reconheça a
questão racial como algo relevante em nível nacional é
entendê-la como de responsabilidade de todos que lutam pela
edificação de uma sociedade justa, igualitária e fraterna.
Para isso é necessário o rompimento do histórico silêncio
sobre a questão racial por parte dos estudiosos, partidos
políticos, intelectuais, universitários e operadores do
direito. Mais do que isso: é preciso nos conscientizar que
estamos diante de um problema concreto que precisa ser
conhecido e enfrentado. Por trás das crenças religiosas, em
uma suposta e inexistente igualdade, há sempre um modo de
pensar e de sentir, hábitos e práticas culturais, valores
que se originam de uma série de instintos obscuros que
escondem a verdadeira eugenia social que ainda campeia no
Brasil. Temos que derrubar esses fantasmas e isso é um dever
moral.
[1]
WRANGHAM, Richard & PETERSON, Dale. O macho
demoníaco: as origens da agressividade humana. Rio,
Ed. Objetiva, 1998, p. 123.
[2] BLACK,
Edwin. A guerra contra os fracos: a eugenia e a
campanha norte-americana para criar uma raça
superior. São Paulo, Ed. A Girafa, 2003, p. 63.
[3] BLACK,
Edwin, op. cit., p. 134/5.
[5] LYRA,
Roberto. Direito Penal Científico (Criminologia).
Rio, José Konfino Ed., 1977, p.111.
[6]
CASTIGLIONE, Teodolindo. Lombroso Perante a
Criminologia Contemporânea. São Paulo, Saraiva,
1962, p. 284.
[7] “É
conhecida a maior persistência do homicídio em
algumas regiões da Espanha que tem um acentuado
caráter de raça, como Aragão e Andaluzia; sucede o
mesmo na Sicília, em Nápoles, em Roma, na Córsega.
Na Áustria observou-se que o homicídio é raro nas
regiões de raça alemã e naquelas em que predominam
os eslavos do Norte, sendo, pelo contrário,
freqüente onde predominam os eslavos meridionais.
Para os outros crimes de sangue dá-se
aproximadamente o mesmo, de sorte que pode
afirmar-se que na Áustria a raça se manifesta como
um fator de indubitável eficácia nos crimes
violentos. E ainda na Alemanha as províncias em que,
como na Prússia oriental e ocidental, os alemães se
misturam aos eslavos e raça germânica é menos pura,
são aquelas em que os homicídios se realizam em
maior número”. GAROFALO, Rafaele. Criminologia, p.
313.
[8]
PEIXOTO, Afrânio. Criminologia. 3ª ed.. São Paulo,
Cia Editora Nacional, 1936, p. 323.
[9]
Alguns desses dados podem ser verificados em
SHECAIRA, Sérgio Salomão & CORRÊA JR., Alceu. Teoria
da Pena, São Paulo, Ed. RT, 2002, págs. 410 e
seguintes.
[10]
“Os resultados da pesquisa são incontestáveis em
apontar a maior punibilidade para negros, tanto se
considerarmos a sua progressiva captação e
manutenção pelo sistema (mais condenados do que
indiciados), como se levarmos em conta a categoria
prisão no processo: além de serem mais presos em
flagrante (do que indiciados por portaria, como a
maioria branca), seus processos correm num prazo
menor, o que é indicativo de maior incidência de
prisão processual”. LIMA, Renato Sergio de et alii,
Raça e Gênero no funcionamento da justiça criminal.
Boletim do IBCCRIM, nº 125, abr/2003, p. 4.
[11]
Interrogatório verídico, prestado no processo
050.04.014493-3, junto à 15ª Vara Criminal de São
Paulo, no dia 15/4/2004, já após a mudança da lei
processual que não mais permite a advertência
inicial feita pela Magistrada.
[12]
Trecho extraído do Ac nº 1.273.119/5, Comarca de
Atibaia, 7ª Câmara do TACRIM-SP, Rel. Luiz Ambra,
v.u.
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