Leia o
discurso que o teatrólogo Augusto Boal, diretor artístico do
Centro de Teatro do Oprimido, proferiu durante o Fórum
Social Mundial.
"A mídia
costuma publicar só o que é espetacular, sensacional, mesmo
que tenha que esconder a verdade. Hoje, fala-se mais da cor
da pele de Barrack Obama do que do seu projeto político,
como ontem falou-se mais dos seios da Carla Bruni do que das
idéias direitistas do seu marido Sarkosy.
A mídia tem dono, e reflete as opiniões do seu proprietário:
o Fórum Social Mundial não tem dono, e deve refletir as
nossas."
Foro, Fórum, significa etimologicamente a praça pública,
onde se pode discutir livremente. Este nosso Foro é mundial
e deve, portanto, discutir os assuntos do mundo.
Temos que saudar o fim da era Bush e seus parceiros, mas
ficar atentos à nova era que começa. Aplaudir os primeiros
atos de Barrack Obama, mas analisá-los com cuidado. Aplaudir
sua decisão de fechar Guantânamo, mas lembrar que isso não
basta: é necessário restituir Guantânamo ao seu legítimo
dono, que é o povo cubano. Aplaudir a ordem de acabar com a
tortura, mas lamentar que os torturadores não sejam punidos
por esse crime de lesa-humanidade e continuem nos seus
postos de comando. Aplaudir o desejo do novo presidente em
dialogar com todos os países, mas explicar que não queremos,
como ele promete ou ameaça, não queremos ver o seu país
liderando o mundo - essa tarefa não compete nem aos Estados
Unidos nem ao Paraguai, mas sim à Organização das Nações
Unidas que para isso foi criada e tantas vezes tem sido
desrespeitada pelo país de Barrack Obama.
O Fórum é social, e temos que falar do genocídio dos
palestinos. Temos que separar, de um lado, o cruel governo
de Israel e, de outro, as centenas de milhares de judeus que
com ele não concordam. Não devemos cometer a injustiça que
se fez com os alemães, pensando que todos fossem nazistas,
quando muitos morreram lutando contra Hitler e seus
asseclas.
Milhares de judeus, dentro e fora de Israel, condenam e se
envergonham do que fez e faz o seu governo, que representa
tão somente aqueles que o elegeram, mas não o judaismo.
Dentro de Israel existem organizações como a dos Combatentes
Pela Paz, de Chen Allon, que condenam a invasão e denunciam
seus crimes. Tenho orgulho em dizer que, para isso, usam o
Teatro do Oprimido entre outras formas de combate.
No Oriente Médio já se inverteu a distribuição de papéis:
se, ontem, Israel foi o pequenino David, hoje é o gigante
Golias, filisteu. O novo Golias, apoiado pelos Estados
Unidos, em 22 dias matou mais de 300 crianças e centenas
mulheres e homens, civis ou combatentes. Eu chorei vendo a
fotografia de um menino, um pequenino David palestino,
jogando pedras contra um tanque de guerra. Se a lenda de
David e Golias, ontem, foi apenas lenda, a história de
Golias e David, hoje, é triste realidade: os 1.300 mortos
ainda estão sendo retirados dos escombros, sem as solenes
pompas fúnebres dos 13 soldados israelis. O Fórum e o mundo
não podem esquecer esse crime antes mesmo que sejam
enterradas suas vítimas.
Nosso Fórum é pluralista, e deve se manifestar contra o
colonialismo italiano que ofende a nossa soberania, que
tenta interferir nas decisões da nossa Justiça, como está
sendo o caso da concessão de asilo a Cesare Battisti. Existe
uma lei brasileira que proíbe a extradição de pessoas
condenadas em seus países à pena de morte ou à prisão
perpétua. É este o caso, é esta a lei! O ministro Tarso
Genro apenas cumpriu a lei - a lei brasileira. O presidente
Lula foi claro explicando aos italianos as sólidas bases da
nossa decisão, mas parece que eles não entenderam, nem disso
são capazes. Por quê?
A Itália, que foi o berço do fascismo e deveria ser também a
sua sepultura, mostra agora que a ideologia colonialista
ainda está viva e pretende anular decisões soberanas do
Brasil, invadindo o nosso Judiciário e querendo nos ensinar
a diplomacia da obediência e da submissão. Temos que
repudiar essa ofensa e libertar o prisioneiro!
Nosso Fórum é social, e a economia também. A maioria dos
países que estão em crise, ou dela se aproximam, sempre
disseram não ter dinheiro para melhorar a Educação, a Saúde,
a Previdência Social. De repente, para socorrer seguradoras,
bancos e montadoras, esses governos descobriram que tinham
bilhões e trilhões de dólares, euros, iens e libras. Nosso
Fórum tem a obrigação moral de interrogar os senhores da
Davos: de onde veio esse dinheiro? Quem os escondia? Quanto
sobrou? Onde estão?
O nosso Fórum Social também é brasileiro e é camponês:
devemos saudar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra, MST, que é o mais democrático e bem organizado
movimento de massas que o Brasil já teve, e que completa
agora 25 de lutas pela terra, luta que continua.
O Fórum Social Mundial não é daqueles que dizem Hay Gobierno?
Soy Contra, e porque assim não é, deve se alegrar em receber
tantos presidentes de tantas Repúblicas sulamericanas juntos
neste evento: Evo, Correa, Kirchner, Chavez, Lugo e Lula.
Nunca se viu fraternidade igual. Queremos agora ver os
resultados concretos dessa irmandade.
Devemos, muito cordialmente, lembrar aos nossos presidentes
que a Política não é a arte de fazer o que é possível fazer,
mas sim a arte de tornar possível o que é necessário fazer!
Caminhar não é fácil! As sociedades se movem pelo confronto
de forças, não pelo bom senso e justiça. Temos que avançar
e, a cada avanço, avançar mais, na tentativa de humanizar a
Humanidade. Não existe porto seguro neste mundo, porque
todos os portos estão em alto mar e o nosso navio tem leme,
não tem âncoras. Navegar é preciso, e viver ainda mais
preciso é, porque navegar é viver, viver é navegar!
Eu sou homem de teatro e não posso deixar de falar de Arte e
Cultura quando falo de Política, porque a Política é uma
Arte que a Cultura produz.
Temo que, mesmo entre nós, muita gente ainda pense em arte
como adorno, e nós dizemos: não é! A Palavra não é absoluta,
Som não é ruído, e as Imagens falam. São esses os três
caminhos reais da Estética para o entendimento: a palavra, o
som e a imagem. São também os canais de dominação pois estão
os três nas mãos dos opressores, não dos oprimidos: a
Palavra dos jornais, o Som das rádios, as Imagens da TV e do
cinema estadunidense, dominam nossos meios de comunicação e
invadem nossos cérebros com seu pensamente único, seus
projetos imperiais e suas mercadorias.
Acabou-se o tempo da inocência... o tempo da contemplação já
não é mais. Temos que agir!
Palavra, imagem e som, que hoje são canais de opressão,
devem ser conquistados pelos oprimidos como formas de
libertação. Não basta consumir Cultura: é necessário
produzi-la. Não basta gozar arte: necessário é ser artista!
Não basta produzir idéias: necessário é transformá-las em
atos sociais, concretos e continuados.
A Estética é um instrumento de libertação.
Eu felicito o nosso Ministério da Cultura pela criação de
mais de mil Pontos de Cultura no Brasil inteiro, onde o povo
tem acesso não só à Cultura alheia, mas aos meios de
produzir sua própria Cultura sem servilismos, sua Arte sem
modismos, porque entendemos que Arte e Cultura são formas de
combate tão importantes como a ocupação de terras
improdutivas e a organização política solidária.
Sonho com o dia em que no Brasil inteiro, e no inteiro
mundo, haverá em cada cidade, em cada povoado ou vilarejo,
um Ponto de Cultura onde a cidadania possa criar e se
expressar pela arte, afim de compreender melhor a realidade
que deve transformar. Nesse dia, finalmente, terá nascido a
Democracia que, hoje, só existe em Fóruns como este!
Ser cidadão, meus companheiros, não é viver em sociedade: é
transformar a sociedade em que se vive!
Com a cabeça nas alturas, os pés no chão, e mãos à obra!
Muito obrigado.
Augusto Boal -
Belém do Pará - 31 de Janeiro de 2009
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