Rafael F.
Scharf
Vice-Presidente da Associação Internacional Janusz
Korczak da Inglaterra
A vida de
Janusz Korczak é tão tocante que, ao contá-la, é
necessário evitar a ênfase patética que se impõe, a
fim de permanecer-se fiel àquele sobre o qual
falamos.
Ele era, na mais profunda acepção do termo, um homem
simples, toda afetação lhe era estranha. É certo que
ele não imaginava que seu nome seria célebre, e é
por isto que cada vez que o glorificamos
publicamente, inaugurando um monumento em sua
homenagem, eu me pergunto qual seria o seu
comentário se sua boca de pedra pudesse falar.
Sua história foi recontada inúmeras vezes e
continuará sendo, porque ela mostra melhor, sem
dúvida, não importando o caso particular, o horror
inexprimível da última guerra e a exterminação dos
judeus poloneses.
Em 5 de agosto de 1942, durante a liquidação do
gueto de Varsóvia, os hitleristas ordenaram o
agrupamento das crianças do orfanato de Korczak e o
envio das mesmas ao campo de morte de Treblinka. O
‘Velho Doutor’ reuniu duzentos pupilos, os fez
colocar-se sabiamente em fileiras e, à sua frente,
partiu com eles para o ‘Umschlagplatz’, no
cruzamento das ruas Stawki e Dzika, onde todos foram
colocados em vagões de carga e enviados para os
fornos crematórios.
Esta marcha nas ruas do gueto foi vista por algumas
centenas de pessoas, e a silhueta pequena de Korczak
dirigindo-se para seu calvário, inconsciente de seu
heroísmo, fazendo aquilo que lhe parecia evidente,
excitava as imaginações. A novidade espalhou-se
imediatamente, repetida de boca em boca com a força
de detalhes inventados: que Korczak carregava nos
braços os dois menores, coisa pouco provável, porque
ele mesmo estava doente e tinha dificuldades em
andar; que o ‘Jundenrat’ tinha intervindo no
derradeiro momento e tinha despachado em seguida um
mensageiro atrás da fila, portador de um salvo
conduto somente para Korczak, que foi por ele
rejeitado com desprezo; que para apaziguar as
crianças ele tinha lhes dito que iam em excursão e
que eles, confiantes, o seguiam sem choro e sem
protesto. Mas nenhum embelezamento é necessário
diante dessa verdade nua e crua; não é preciso
ajuntar qualquer coisa para torná-la mais eloqüente.
A antítese do espírito e das dificuldades é clara e
definitiva: um homem sábio por excelência,
desinteressado e bom, opondo-se aos covardes,
bárbaros obtusos, que se mostravam sob seu aspecto
mais satânico.
Entre os milhões de mortes anônimas, a de Korczak
tem um grande significado. Nos campos e guetos, ele
se tornou para muitos, uma inspiração, pois aí o que
mais ajudava a sobreviver era a convicção obstinada
e indestrutível que a dignidade humana poderia
vencer , embora tudo parecesse provar o contrário.
A imprensa clandestina dos campos mostra bem o
quanto esta derradeira caminhada sublime do Velho
Doutor foi um reconforto e uma dose de ânimo para
seus contemporâneos. A partir daí sua glória tem
crescido e o mundo fez de Korczak um símbolo moral.
É preciso que nossa atenção à sua morte não
obscureça o caráter de sua vida. Henryk Goldszmit
(este era o seu verdadeiro nome – Janusz Korczak foi
um pseudônimo tirado de um romance pouco conhecido
de Kra Szewski) nasceu em Varsóvia há pouco mais de
cem anos numa família abastada. O fato de seu pai
ter sido um advogado conhecido e seu avô um médico
mostra até que ponto o seu meio foi assimilado. Ele
cresceu na solidão, preservado das influências do
exterior, sem se dar conta de que era judeu e sem
saber o que isso significava. Antes de terminar a
escola ele perdeu o seu pai, atingido por uma doença
mental. A miséria sucedeu a abundância. O jovem
Henryk tomou sobre si, da maneira como pode, o
encargo de sua mãe e irmã, e nos anos seguintes,
freqüentemente passando fome, estudou medicina com
enormes dificuldades. Quando, por fim, obteve seu
diploma, as coisas começaram a melhorar,
contribuindo também para isso sua reputação de
escritor que se afirmava. Mas isto não durou muito
tempo. Repentinamente um tipo de necessidade
interior mudou completamente seu destino.
Com trinta e quatro anos ele abandonou o exercício
da medicina para se ocupar de um orfanato, que do
início ao seu fim, permaneceu associado ao seu nome.
A idéia fixa de consagrar sua vida às crianças
parecia possuí-lo. Ele não era um idealista ingênuo;
o que o caracterizava era uma compreensão
extraordinária da criança e a convicção da
necessidade de lutar pelos seus direitos no mundo
governado pelos adultos. Ele não tinha confiança no
mundo governado pelos adultos, mas como cada
verdadeiro reformador ele julgava que mesmo uma só
pequena vela acesa valia mais que lamentar-se de
escuridão. Sua intuição não excluía sua
sensibilidade e ela está edificada sobre uma
observação constante, clínica, poder-se-ia dizer,
sobre um estudo minucioso dos fatos. Totalmente
absorvido por sua única idéia, não havia lugar nele
para tudo que os outros davam tanta importância –
dinheiro, a celebridade, um lar, uma família.
Seu orfanato, construído e mantido exclusivamente
graças às doações de pessoas caridosas, era
destinado às crianças dos bairros pobres de
Varsóvia. A obtenção de fundos para fins de caridade
tinha então, como hoje, seu aspecto desagradável,
que freqüentemente irrita aqueles que dela dependem.
Korczak balançava a cabeça em desaprovação perante o
preço do material gasto para encerar o assoalho
antes de um baile de benemerência e ele se lamentava
do tempo que perdia com quem vinha visitar o
orfanato. Mas a força de sua personalidade fazia que
os doadores considerassem uma honra o financiamento
de seu trabalho.
No domínio da educação e da psicologia da criança,
ele era um pensador pragmático original e, ao mesmo
tempo, um pioneiro de princípios que serviam de
modelos para outros. Ele se esforçava constantemente
de refazer seu sistema baseado sobre a compreensão
das necessidades mais profundas da criança. Sua
influência se exercia tanto por sua presença direta
quanto pelo que escrevia no jornal do orfanato
preparado pelas crianças e destinados à elas mesmas;
a leitura em comum dessa publicação era um
acontecimento semanal dos mais importantes. Conta-se
que ao longo de 30 anos de seu trabalho intenso, ele
jamais deixou de fornecer um artigo por semana à
redação. As regras do orfanato eram seguidas por um
código, cujo parágrafo 1000 previa como a pena mais
alta, a expulsão pura e simples. Cada criança que
tinha reclamação contra outra tinha o direito de a
fazer comparecer perante um tribunal composto por
seus colegas. Korczak mesmo, se tivesse sido
convocado, teria de se apresentar perante este
tribunal e de se submeter a sua sentença.
À noite, após uma ronda em todos dormitórios, o
Velho Doutor retornava ao seu quarto no sótão, a
única ‘casa’ que ele teve durante toda a sua vida
adulta, e lá, até tarde da noite, ele colocava ordem
em suas notas e escrevia.
Ele era um escritor fecundo tanto no seu domínio
profissional quanto, e antes de tudo, na sua criação
para as crianças e sobre as crianças. Seus livros
ilusoriamente simples nas suas formas e conteúdos,
impregnados na mesma proporção de melancolia e
humor, refletindo seus anseios interiores, muitas
vezes satiricamente áspero em relação a sociedade,
sempre cheios de emoção e compreensão, deixavam
traços duráveis na memória de seus leitores jovens e
velhos, destinando-se a ficar gravados na história
da literatura desse gênero.
Lá pelos meados dos anos trinta Korczak envolveu-se
em dois empreendimentos na Palestina. O que ele aí
viu o comoveu e o refrescou espiritualmente. Sob o
encorajamento de numerosos amigos e antigos
discípulos ele começa então a pensar seriamente em
fixar-se lá para sempre. Mas havia obstáculos. O que
o atormentava sobretudo, era o medo de não encontrar
um sucessor adequado para continuar seu trabalho em
Varsóvia. Ou seja, o pensamento de se afastar de sua
terra natal lhe era insuportável. Nas cartas que ele
escrevia aos seus amigos para explicar as causas de
suas hesitações ele invocava o ‘seu Vístula’ e ‘sua
Varsóvia bem-amada’, das quais ele jamais se
consolaria se tivesse que deixar. Além do mais, ele
estava sem dinheiro e hesitava em se colocar
dependente de qualquer um.
Quando os hitleristas fecharam os judeus de Varsóvia
dentro do gueto, o orfanato perdeu sua casa à Rua
Kruchmalna, do lado ‘ariano’, e transportou-se para
locais provisórios, no interior dos muros do gueto.
Naquele momento Korczak já percebia melhor que a
maioria das pessoas que a máquina impiedosa os
mataria a todos. Mas ele pensava em não renunciar ao
seu direito de aliviar os sofrimentos. Alquebrado e
doente, cada dia ele reunia as forças que lhe
restavam e partia à procura de viveres e de
medicamentos para as crianças. Às vezes ele não
trazia nada de suas buscas obstinadas, outras vezes
ele voltava somente com uma ínfima parte do
necessário. Ele não temia solicitar com
impertinência, de mendigar, de envergonhar as
pessoas que se esquivavam de sua nobre ação. Nos
dias em que ele nada encontrava ele não hesitava em
dirigir-se mesmo aos piores especuladores e
opressores judeus. Apesar de fome incessante cada
vez mais insuportável e às doenças sempre mais
freqüentes, ele cuidava para que seu orfanato
funcionasse normalmente, a fim de que seus alunos
pudessem sentir-se bem. Freqüentemente ele trazia
dos locais mais distantes uma nova criança
encontrada na rua, no fim de suas forças, para quem
a bondade do Velho Doutor significava a salvação
durante algum tempo ainda.
Nestas condições rigorosas levadas ao extremo e que
em tempo normal é difícil de se imaginar, nós temos
em Korczak, no seu trabalho cotidiano, um exemplo do
que pode fazer um genuíno homem guiado pelo amor.
Sua vida é um modelo e somos tentados a ver nele,
nesta silhueta franzina revestida de avental de
inspetor que ele usava habitualmente, um exemplo
típico de toda uma geração, uma encarnação da ‘idade
da criança’. Sua grandeza, que consistia nem mais
nem menos em fazer seu dever, podia ser aquela de
qualquer um, e mesmo sua morte trágica foi uma coisa
comum, lá onde o martírio estava na ordem do dia.
Durante o ‘Ano Korczak’, instituído pela UNESCO para
celebrar o centenário de seu nascimento, os
escritores, os sábios, as pessoas de boa vontade em
todas as partes do mundo, procuraram enriquecer-se
com o conhecimento desse homem e de suas idéias, de
sua vida e de sua morte, através de livros, de
artigos e simpósios.
É de se supor que graças a isto, numerosos são
aqueles que tomaram conhecimento do seu nome e do
que ele significa. Sem dúvida é na Polônia e em
Israel que ele é mais conhecido. Mas, nesse mundo
barulhento e apressado de hoje em dia, a lembrança
empalidece rapidamente. A despeito de todos os
esforços ela desaparece progressivamente, sob uma
massa de outros negócios. Aqueles que amam Korczak e
que crêem na força de seu exemplo sentiam que era
necessário encontrar um modo mais concreto de
imortalizar sua figura e suas idéias. Assim souberam
com alegria que uma obra grandiosa seria realizada
na Polônia com a aprovação e a sustentação
financeira do governo: um Instituto Científico de
Proteção e Educação Janusz Korczak.
Foi-lhe destinado um espaço deslumbrante de uma
centena de hectares lá onde Vístula – o Vístula
bem-amado de Korczak – contorna a localidade de
Lomianski. O projeto já está pronto.
É um empreendimento magnífico que levará seu nome.
Não uma estátua de bronze ou de mármore, mas um
centro cheio de vida, para onde virão crianças de
perto e de longe, onde elas crescerão, se
instruirão, se divertirão juntas, próximas à
natureza, numa atmosfera de compreensão e boa
vontade para com todos. Os educadores e os
professores aí se reunirão para aprender observar,
para participar das experiências de trabalho com as
crianças e os adolescentes, para aproximar-se da
realização dos sonhos de Korczak, mesmo que isso
seja um passo apenas para um mundo no qual as
crianças possam viver felizes.
É um empreendimento magnífico que levará seu nome.
Não uma estátua de bronze ou de mármore, mas um
centro cheio de vida, para onde virão crianças de
perto e de longe, onde elas crescerão, se
instruirão, se divertirão juntas, próximas à
natureza, numa atmosfera de compreensão e boa
vontade para com todos. Os educadores e os
professores aí se reunirão para aprender observar,
para participar das experiências de trabalho com as
crianças e os adolescentes, para aproximar-se da
realização dos sonhos de Korczak, mesmo que isso
seja um passo apenas para um mundo no qual as
crianças possam viver felizes.
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