Por(Leila
Ferreira)
Não há nada que me deixe mais frustrada do
que pedir sorvete de sobremesa,
contar os minutos até ele chegar e aí ver o
garçom colocar na minha frente uma bolinha minúscula do meu
sorvete preferido - uma só. Quanto mais sofisticado o
restaurante, menor a porção da sobremesa. Aí a vontade que
dá é de passar numa loja de conveniência, comprar um litro
de sorvete bem cremoso e saborear em casa com direito a
repetir quantas vezes a gente quiser, sem pensar
em calorias, boas maneiras ou moderação. O sorvete é só
um exemplo do que tem sido nosso cotidiano. A vida anda
cheia de meias porções, de prazeres meia-boca, de
aventuras pela metade. A gente sai pra jantar, mas come
pouco. Vai à festa de casamento, mas resiste aos bombons.
Conquista a chamada liberdade sexual, mas tem que fingir que
é difícil (a imensa maioria das mulheres continua com
pavor de ser rotulada de 'fácil'). Adora tomar um
banho demorado, mas se contém pra não desperdiçar os
recursos do planeta. Quer beijar aquele cara 20 anos mais
novo, mas tem medo de fazer papel ridículo. Tem vontade de
ficar em casa vendo um DVD, esparramada no sofá, mas se
obriga a ir malhar. E por aí vai. Tantos deveres, tanta
preocupação em 'acertar', tanto empenho em passar na vida
sem pegar recuperação.... Aí a vida vai ficando sem
tempero, politicamente correta e existencialmente
sem-graça, enquanto a gente vai ficando melancolicamente sem
tesão.
Às vezes, dá vontade de fazer tudo 'errado'
- deixar de lado a régua, o compasso, a bússola, a balança e
os 10 mandamentos. Ser ridícula, inadequada, incoerente
e não estar nem aí pro que dizem e o que pensam a
nosso respeito. Recusar prazeres incompletos e meias
porções.
Até Santo Agostinho, que foi santo, uma vez
se rebelou e disse uma frase mais ou menos assim: 'Deus,
dai-me continência e castidade, mas não agora'. Nós, que não
aspiramos à santidade e estamos aqui de passagem, podemos
(devemos?) desejar várias bolas de sorvete, bombons de
muitos sabores, vários beijos bem dados, a água batendo sem
pressa no corpo, o coração saciado. Um dia a gente cria
juízo. Um dia. Não tem que ser agora. Por isso, garçom, por
favor, me traga: cinco bolas de sorvete de coco, um sofá pra
eu ver 10 episódios do 'Law and Order', uma caixa de trufas
bem macias e o Clive Owen embrulhado pra presente - não
necessariamente nessa ordem. Depois a gente vê como é que
faz pra consertar o estrago.
-- 'Boa Terra em teus pés, Água o bastante
em sua
semente, bom Vento para o teu sopro, Fogo em
teu coração
e muito Amor em teu ser.' (J.Y.Leloup ) |