Acompanhe a entrevista abaixo sobre o filme: Entre Os Muros
da Escola
Laurent
Cantet sabe que Entre os Muros da Escola é a sua
obra-prima.Com a língua bretã treinada desde que deu início
à correria, o realizador conversou com Zero Hora por
telefone desde a capital paulista. Além de falar sobre
educação com a experiência de quem ouviu relatos de centenas
de alunos da periferia de Paris – de onde saíram muitas das
histórias de Entre os Muros, sempre protagonizadas pelos
próprios estudantes –, Cantet também conta, a seguir,
detalhes da produção deste grande filme, desde o encontro
fortuito no qual conheceu Bégaudeau até a
consagração que tem obtido onde quer que o longa seja
exibido.
Zero Hora – François Bégaudeau é autor do livro,
coroteirista e protagonista de Entre os Muros da Escola.
Certamente tem participação importante na autoria do filme.
A ideia da adaptação foi sua ou dele?
Laurent Cantet – Eu estava escrevendo o roteiro de
um filme que se passava numa escola e contava uma história
parecida com a de Suleymane (aluno originário de Mali que,
no filme Entre os Muros, é o mais indisciplinado da turma)
quando o livro de François estourou na França. Aí fomos
convidados, ele e eu, para um debate sobre educação numa
rádio de Paris, cada um para falar de sua obra. Ali nos
conhecemos e, de imediato, fiquei muito interessado em Entre
les Murs. Há uma riqueza documental única no volume. Ainda
assim, discutindo, trabalhando juntos, pensamos que
poderíamos ir além do texto original.
ZH – Como assim?
Cantet – Pensamos em ouvir outros pontos de vista,
sobretudo dos alunos, e não ficar restritos ao relato do
professor. Estava claro que a ideia central do filme deveria
ser a do livro: uma história que espelha a realidade de toda
a sociedade dentro da moldura bem definida que é a escola.
Mas seria melhor – para conseguir uma construção dramática
mais consistente, uma verdade ficcional mais interessante –
trazer os adolescentes para a própria construção da trama.
ZH – Vocês foram atrás dos alunos do François? Por
favor, conte mais sobre o processo de escolha dos
personagens.
Cantet – François não conhecia nenhum dos
estudantes, nunca os havia visto antes do filme. O que
fizemos foi, em primeiro lugar, selecionar as regiões da
periferia de Paris que concentram maior diversidade de
pessoas no que diz respeito à origem e à condição social.
Depois, estabelecer um recorte específico de geração:
queríamos alunos de 13 a 15 anos, idades com as quais o
François trabalha bastante. Conseguimos muitos voluntários,
e com eles fizemos workshops. Ali ouvimos as experiências de
todos e escolhemos alguns para atuar no filme, uns 50. O
processo de ensaios e aprimoramento dos diálogos – e do
próprio roteiro – se prolongou e, no final, ficamos com 24.
Foi um ano inteiro de preparação antes do início das
filmagens.
ZH – Seu interesse parece estar voltado para temas
sociais – seus longas anteriores, Recursos Humanos (1999), A
Agenda (2001) e Em Direção ao Sul (2005), também são filmes
de caráter político. Por que, agora, voltar-se para a
educação?
Cantet – A escola é onde você aprende a se tornar
um cidadão. É o local de formação do adulto que vai viver na
sociedade. E, se você olhar para o que acontece em sala de
aula, vai se dar conta de que se trata de uma alegoria de
toda essa sociedade. A luta de alguém por espaço, por se
fazer ouvir fora da escola praticamente se repete dentro
dela. O adolescente que afronta o professor não faz isso
apenas pensando naquele contexto, mas porque simplesmente
quer ter voz, na sala de aula ou fora dali. Sinto que há
muitos jovens, muitas crianças que não se sentem membros da
comunidade em que vivem, sentem-se excluídos. De outra
parte, parece que os adultos não enxergam isso, reprovam
sistematicamente seus atos como se eles surgissem do nada,
como se não houvesse algo que os levasse a isso. Sempre
pensei em fazer um filme que questionasse essa forma como
vemos os adolescentes, sobretudo aqueles que têm essa
sensação de exclusão. Que, aliás, são os mesmos que convivem
com a violência das ruas. Diante de tudo isso, como deveriam
reagir?
ZH – Cada vez mais intelectuais questionam o excesso
de liberdade concedido aos jovens. Você acha que mais
disciplina não controlaria de forma mais eficaz o seu
comportamento na escola? A questão também é técnica: mais
rigidez, por exemplo, no ensino da língua culta, em vez da
tolerância com modos de expressão mais informais, não
formaria adultos intelectualmente mais aptos?
Cantet – Esse raciocínio é interessante, mas ele
diz mais respeito à educação que vem de casa, ao período
anterior à escola. Quando o adolescente chega à sala de
aula, ele já se comunica com gírias, já tem uma tendência a
faltar com respeito etc. No colégio, se um professor quiser
ensinar algo a um aluno, ele precisa ser entendido por esse
aluno. A escola não é uma ilha isolada do restante da
sociedade, ela está inserida nessa sociedade e deve lidar
com ela como ela é, impondo os valores que devem ser
impostos mas não ignorando os valores que vigoram fora dela,
sob pena de não se conseguir estabelecer qualquer diálogo.
ZH – Você tem 47 anos. O quanto o ensino na França
mudou desde que você tinha a idade dos adolescentes do
filme?
Cantet – Com 13, 14, 15 anos, eu ainda morava em
uma pequena comunidade no oeste da França. Depois, vivi em
Marselha antes de me mudar para Paris. Ou seja, não
frequentei os colégios da capital. De qualquer forma, em
qualquer lugar do país, àquele tempo, a imensa maioria dos
estudantes eram brancos e de classe média. Havia um tipo
hegemônico. Hoje, ao contrário, há uma diversidade absoluta.
Em Paris, há alunos africanos, árabes, franceses, orientais
– como se vê em Entre os Muros da Escola. Outra coisa:
antes, trabalhava-se a formação de cada garoto com mais
vagar. Atualmente, é comum decidir-se sobre onde e o quê
estudar mais tarde, já em cima da hora de trabalhar uma
formação profissional específica. Além disso, não muito
tempo atrás conhecia-se os colegas desde o início dos
estudos, quando se era criança, até a faculdade. Você podia
estudar 15 anos ao lado das mesmas pessoas – o que não
existe mais. Isso modifica enormemente a experiência dos
estudantes, a sua formação.
ZH – Conforme se vê no filme, alguns problemas da
escola pública, na França, não são diferentes dos do Brasil.
Você acha que são problemas universais?
Cantet – De alguma forma, sim: o filme trata de
ocorrências globais. Mas há uma particularidade na França
que talvez não se repita em muitos outros países: a escola
pública é melhor do que a particular. O maior problema da
educação, hoje, diz respeito aos professores. Eles estão
cada vez mais cansados e, consequentemente, impotentes
diante do quadro que têm de administrar. Porque hoje não
basta mais ao professor ensinar o conteúdo de uma aula. Ele
precisa lidar também com a personalidade muitas vezes
problemática do aluno – no filme, a dúvida que paira sobre
François quando Suleymane está ameaçado de expulsão reflete
bem essa questão: ele merece ser expulso, mas isso trará
consequências drásticas para o menino fora da escola.
ZH – Você escreveu parte do roteiro “fora dos muros”
da escola, como foi noticiado, e depois desistiu?
Cantet – Sim, antes de conhecer o François e o seu
livro. O personagem que no princípio seria central,
Suleymane, voltaria para seu país de origem – e eu filmaria
isso. Mas o trabalho do professor é tão eficiente, inclusive
na sua metáfora da sociedade como um todo, que não foi
necessário. O projeto ficou realmente fechado quando
mergulhamos exclusivamente no ambiente interno da escola.
ZH – Essa decisão, somada à escolha dos alunos,
todos atores não-profissionais, vivendo situações conhecidas
por eles, deu grande consistência dramática à história. As
tramas paralelas se sustentam muito bem, de maneira
articulada e coerente. O quanto a estética documental foi
importante para obter esse resultado?
Cantet – Diante da história que queríamos contar,
não havia outra opção que não a linha documental. Por isso,
todas as decisões autorais levaram o filme a andar por esse
caminho. Qualquer coisa que pensávamos nos aproximava de um
documentário. Qualquer filtragem fotográfica, qualquer
inserção de trilha sonora ou outro recurso de pós-produção
poderia proporcionar um caráter artificial que não combina
com a história. Estamos lidando com algo muito cru. E, como
você mesmo mencionou, muitos conflitos paralelos. Não se
podia desviar muito o foco.
ZH – O cinema francês das últimas décadas investiu
muito em comédias e filmes populares. Mas a temática social
e os filmes políticos estão voltando – o fato de a Palma de
Ouro ter ficado na França depois de tanto tempo talvez tenha
a ver com isso. Por que essa mudança está em curso?
Cantet – Talvez sejam as mudanças drásticas que o
país sofreu nos últimos anos, com uma escalada muito grande
de violência, a questão cada vez mais latente dos
imigrantes, conflitos raciais emergentes, tudo isso além dos
problemas sociais universais. Os artistas não podem ficar
quietos diante dessa realidade. É preciso se perguntar o que
está acontecendo, debater, provocar. É hora de refletirmos
mais a fundo o que se passa com o planeta. O próprio
público: será que ele quer mesmo trabalhar durante o dia e
se alienar com uma bobajada à noite, só isso? É claro que,
às vezes, é bom se alienar com uma bobajada. Mas a arte
precisa fazer mais pelas pessoas. O cinema precisa fazer
mais pelas pessoas.
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