Bernard Charlot é professor de Ciências
da Educação na Universidade Paris VIII.
Dedica-se ao estudo das relações com o saber,
principalmente a relação dos alunos de classes populares
com o saber escolar. Ele esteve no país durante o Fórum
Mundial de Educação, onde concedeu esta entrevista
exclusiva ao site do CRE: |
|
ENTREVISTA
>>
Durante suas pesquisas sobre a relação dos jovens brasileiros
com o saber, o que lhe chamou a atenção na escola aqui no
Brasil?
BC>> Numa comparação com o meu país, a França, vejo que
lá a escola é uma instituição mais forte do que no Brasil, uma
instituição na qual o aluno tem o direito de pertencer para
aprender coisas de que ele goste ou não. Mas o que mais me chama
a atenção no caso brasileiro é a importância que é dada ao lado
afetivo do saber. Existe aqui uma relação muito forte entre o
saber e o corpo: o saber deve ter efeitos emocionais para ter
valor. E isso acontece tanto na cabeça do aluno como na da
professora. Acho que por isso ela tem uma grande dificuldade em
deixar de ser "tia". Isso traz um problema: se a tia não gosta
do aluno, ou se o aluno não gosta da tia, ele não vai aprender.
>> Se o senhor fosse professor numa classe de adolescentes
brasileiros, qual seria a sua preocupação hoje, na hora de
planejar suas aulas?
BC>> Me preocuparia com a questão da auto-estima. O
adolescente é frágil e tem uma imagem frágil de si mesmo. O
saber deve permitir que ele reforce essa auto-imagem, ao invés
de feri-la ainda mais como muitas vezes acontece. Porque quando
o saber é uma fonte de sofrimento pessoal psicológico na sua
auto-estima, você tende a desvalorizar esse saber que te
desvaloriza.
>> O que é aprender, segundo sua visão?
BC>> É algo que se manifesta de formas heterogêneas e que
é bem mais amplo do que adquirir um saber. É, por um lado,
apropriar-se de um enunciado que só tem existência através das
palavras. Mas é também dominar determinadas formas de se
relacionar com os outros e consigo: a se apaixonar, a ter
ciúmes... Isso tudo se aprende, não é natural. O resultado da
aprendizagem, portanto, não precisa vir necessariamente na forma
de um enunciado verbal. Como saber se uma pessoa aprendeu a
nadar? O resultado vem inscrito no seu próprio corpo, na maneira
como ela se movimenta na água. Essas formas diferentes de
aprender muitas vezes concorrem entre si no mundo do aluno. O
desafio da escola é fazer com que o que se aprende lá possa
também permitir ao adolescente se construir enquanto sujeito.
Isso nem sempre acontece, principalmente nos meios populares.
>> Por que alguns alunos têm mais vontade de aprender do que
outros?
BC>> Toda pessoa tem uma atividade intelectual, mas o
fato de mobilizar ou não essa potencialidade depende do sentido
que ela confere àquilo que está ouvindo e à situação que está
vivenciando. Isso varia, em primeiro lugar, com a história
singular de cada aluno. Ou seja, os motivos que despertam o
desejo de aprender numa criança podem não ter nenhum efeito
sobre outra, que tem uma história pessoal diferente. Além disso,
há uma explicação de origem sociológica: sabe-se que há uma
postura diferente frente à escola entre as crianças de classes
médias e de meios populares. Não sabemos muito bem como a classe
influencia, mas é inegável que ela tenha um peso importante.
>> A classe social é um fator determinante na aprendizagem?
BC>> Não há uma relação automática de causalidade. O que
sabemos é que existe uma correlação estatística entre a posição
social do aluno e o sucesso ou o fracasso escolar. Mas não
devemos esquecer de que existem crianças de meios populares que
são bem sucedidas na escola. E crianças de classe média que
encontram dificuldade. Nas minhas pesquisas, venho tentando
descobrir por que o risco de mau êxito é maior entre alunos de
classes populares. E, além disso, por que alguns deles se dão
bem, a despeito das condições desfavoráveis. Essa segunda
questão é muito importante, porque pode nos dizer em que direção
atuar para superar o fracasso escolar.
>> Como o professor pode interferir na relação dos alunos com
o saber, de modo a despertar o desejo de aprender nos mais
desmotivados?
BC>> Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que o que vai
determinar a aprendizagem é a atividade intelectual do próprio
aluno. O professor é importante, mas pelo efeito que ele pode
ter nessa atividade. Do mesmo modo, os aspectos institucionais
são importantes pelos seus efeitos sobre a prática do professor
e, por tabela, sobre a atividade intelectual do aluno.
O professor deve entender que a lógica do aluno, principalmente
o de classe popular, é muitas vezes diferente da lógica da
escola. Nesta, é o estudante que vai realizar uma atividade
intelectual para adquirir saber. Na lógica do jovem, é o
professor quem vai ter esse trabalho. Seu papel é apenas
sentar-se na sala e aguardar que lhe passem esses conhecimentos.
O professor tem de mudar essa situação, construindo o aluno na
criança, no adolescente. Esse é um trabalho ao mesmo tempo
terrível e apaixonante, que não sei se é a "professora tia" que
pode fazer. Acho que deveria ser a "professora professora", a
profissional.
>> Nessa tentativa de motivar os alunos, alguns professores
tentam mil coisas. Até que ponto isso interfere na relação com o
saber?
BC>> Ao invés de falar em motivação, prefiro falar em
mobilização. Há uma diferença importante entre essas duas
palavras. Motiva-se alguém de fora, mas se mobiliza de dentro.
Muitas vezes, constrói-se com esse discurso de motivação uma
pedagogia muito artificial, em que o professor ensina a fazer um
bolo para dar aula de Matemática. Isso só terá algum efeito se o
dispositivo usado fizer algum sentido para o ensino. Mas
normalmente não é isso que acontece. Uma motivação externa em
geral cria um sentido enviesado. O que o aluno quer ao fazer um
bolo? Quer comer o bolo. Ele não está nem aí com a Matemática.
Essas motivações de fora são muito artificiais.
É importante compreender que a mobilização é interna e supõe um
desejo do próprio aluno. Mobilizar é fazer uso de si, para si. E
isso representa uma diferença fundamental.
>>
Como aproximar o "aprender na escola" do "aprender na vida"?
BC>> Essas duas formas são diferentes, mas não deveria
haver uma barreira tão grande entre elas. O estudo da história
de Portugal no século XIX, por exemplo, deve fazer sentido para
que o aluno entenda o que é a vida no Brasil agora e o que está
fazendo aqui. A escravidão, as batalhas, as conquistas... Isso
tudo deveria produzir uma reflexão para que os estudantes
entendessem melhor quem eles são. Dessa forma existirão pontes
entre o ensino acadêmico e o que se vive. E a aula ganhará muito
mais sentido.
>> Como deveria ser a escola ideal?
BC>> Aquela que questiona, que primeiro traz os
questionamentos e só depois o conhecimento. Que mobiliza a
atividade intelectual e dá sentido aos saberes. Que é respeitada
como instituição. Que estimula a auto-estima, a imagem que os
alunos têm de si mesmos. Aquela, por fim, em que o saber é
também fonte de prazer - o que não significa que não há esforço,
pois o prazer mais importante para um indivíduo é se sentir
inteligente.
>> Qual a sua opinião sobre o sistema de ciclos?
BC >> O princípio da escola ciclada é mais justo do que o
da seriada. O problema é que pode haver contradições entre esse
projeto político e as práticas pedagógicas da sua implantação.
Na França, temos há dez anos o sistema de ciclos e quase ninguém
percebeu a mudança. Por que isso acontece? Porque muitas vezes o
sistema de séries permanece camuflado nas escolas cicladas. O
que temos de pensar é em que práticas pedagógicas são
necessárias para concretizar efetivamente o projeto político dos
ciclos.
>> E o que o senhor pensa sobre a repetência?
BC>> A repetência é ruim, quanto a isso não tenho
dúvidas. Mas também acho que, na prática, um aluno que passa sem
saber acaba atrapalhando a si e aos colegas. Mais importante do
que ficar discutindo sobre a repetência é refletir sobre as
práticas que permitem que todos os alunos sejam bem sucedidos.
>> Como fazer um projeto pedagógico?
BC >> Na base de um projeto pedagógico é preciso haver
sempre uma escolha de valores, uma representação do mundo, do
ser humano e da sociedade. Definida essa dimensão política, é
preciso traduzi-la para a especificidade da escola, para a
esfera pedagógica. E aí é importante lembrar que a escola não é
só o seu projeto, mas também o que está fazendo na prática, os
métodos que são efetivamente utilizados, o que os alunos estão
aprendendo... Proponho, aos professores, que questionem seus
atos pedagógicos. Por exemplo: devo prosseguir a aula se 5 dos
meus 25 alunos não estão entendendo? E quando for apenas um?
Essas escolhas não são apenas atos pedagógicos, há um
significado político por trás delas.
>> O que é preciso para construir uma escola democrática?
BC >> Que cada profissional envolvido com a educação
reflita sobre seus atos políticos e pedagógicos. São as nossas
contradições que devemos enfrentar se quisermos construir uma
escola verdadeiramente democrática.