Jorge
Forbes
Entrevista por Gustavo Klein
O psicanalista Jorge Forbes comenta assuntos diversos
como juventude, esportes radicais, pós-modernidade e até
os rumos da educação no mundo globalizado
Dono de posições polêmicas e referência em análise
lacaniana no Brasil, o psiquiatra Jorge Forbes, nascido
em Santos, tem dedicado sua trajetória profissional
tanto ao estudo de fenômenos de comportamento ligados
aos jovens (como as festas rave e os esportes radicais)
quanto à analise dos efeitos que a globalização impõe no
mundo moderno. Na entrevista a seguir, Forbes fala de
todos esses assuntos e analisa, inclusive, casos como o
de Suzanne Von Richtoffen.
Um de seus principais estudos tem o jovem como
protagonista. A que aspectos ele se refere?
Há mais de 10 anos eu pesquiso os efeitos que a
globalização traz na identidade, no laço social, no
amor, no trabalho, na família etc. Em uma dessas
pesquisas, fiz uma análise do jovem atual, das festas de
música eletrônica conhecidas como raves e dos esportes
radicais. Não acho que eles sejam fenômenos passageiros
ou moda e me espanta muito que grandes especialistas,
daqueles que adoram discutir a tal juventude em crise,
nunca tenham ouvido falar nelas ou tentado estudá-las.
Algumas festas rave agregam 2 milhões de pessoas, o que
me fez pensar o que pode unir tanta gente em torno de
uma música sem palavras e, por isso, sem bandeiras, que
se diferencia pelo número de batidas.
A que conclusão chegou?
Que essa música efetivamente agrega, é fator de união
entre os jovens. Também percebi que eles não a ouvem
como as gerações anteriores curtiam música, sentados em
uma sala, tomando um drinque e ouvindo Nat King Cole.
Eles próprios não suportam ouvir essa música nessas
condições. Ela é feita para dançar, para a balada. Estas
pessoas estão todas juntas, curtindo essa música, mas
estão sozinhas. Eles descobriram isso: o estar junto
sozinho. É uma espécie de monólogo articulado. A
sociedade, então, vai ter que criar espaços para que as
pessoas estarão juntas mas não necessariamente fazendo a
mesma coisa ou se compreendendo mutuamente.
Os esportes radicais também são alvo de seus estudos.
Qual é a explicação para que seus praticantes tenham o
desejo de chegar ao limite?
Pois é, o esporte hoje também não é o mesmo da minha
época. No meu tempo era bola, frescobol, tênis,
basquete, vôlei. Agora é asa delta, skate, paraglider,
kite surf, canoagem, rafting. Todos eles propõem
situações-limite. Cheguei à conclusão de que a sociedade
de hoje não elabora a morte. Antigamente, estávamos
incluídos em uma sociedade que pensava a morte, na
quaresma, por exemplo. Essas coisas não existem mais nas
cidades grandes, a igreja não ocupa mais o espaço de
antes e a sociedade não tem outros modos de fazer a
pessoa se deparar com a morte, a não ser de forma
suprimida de emoção. Essa moçada está buscando formas de
trabalhar esses temas, de conversar com o limite.
Descobrem esse limite e, com isso, se acalmam, se
localizam.
Essa falta de relação emocional com a morte é o que
produz criminosos como Suzanne Von Richtoffen, que
aparentemente não expressam emoções após terem cometido
crimes bárbaros?
Não adianta tentar achar uma categoria psiquiátrica para
a Suzanne, dizer que ela é psicótica, histérica ou
perversa. Esse tem sido o principal erro dos
especialistas e também da imprensa. O desespero por
explicação chega a tal ponto que explicações absurdas
são tomadas como verdade, como a de uma revista semanal
que garantiu que Suzanne matou os pais porque a mãe
trabalhava fora e o pai era um rígido alemão.
O caso de Suzanne, aliás, está longe de ser único. É
um fenômeno de que proporção?
O caso de Suzanne é muito mais comum do que sonhamos
imaginar. O dela aparece por ser um caso-limite, um
transbordamento, mas o fenômeno é comportamental e
bastante amplo. Não faz muito tempo, fui até a delegacia
acompanhar o caso de um rapaz que estava andando com a
namorada na rua, passou um outro jovem e lhe deu com um
soco inglês no rosto. Eles não se conheciam, nunca
tinham se visto e não houve qualquer contato prévio. Nem
bate-boca nem nada. Agressão gratuita, pura e simples.
Ainda no Distrito, a delegada pede minha opinião sobre
um outro caso que acabara de acontecer. Um garoto,
conversando com a namorada pela Internet, com câmera,
trocando juras de amor etc. Em certo momento, o garoto
diz para a namorada que está um pouco chateado. Vira a
câmera para a janela e se joga do décimo sétimo andar.
Não é o tipo de coisa que pode ser prevista?
Não dava para prever. Não havia nenhum histórico
anterior, pelo menos no sentido clássico, do modo como
esse tipo de coisa era previsto antes. E os outros
problemas ligados a esse fenômeno idem. As drogas, por
exemplo, afetam um número muito maior de pessoas do que
a imprensa tem noticiado. Por quê? Porque o tóxico é um
receptor universal. Frente à angústia, ao fato de os
laços de identidade estarem soltos, o tóxico responde às
solturas de qualquer pessoa. Isso é um fenômeno que está
ocorrendo e que vai continuar acontecendo se nós não
legitimarmos os novos laços sociais. Um dos caminhos da
nova psicanálise é justamente este, o de trazer um
pouquinho desses novos elementos.
Ainda sobre o caso da Suzanne: se não existe um jeito
de enquadrar, como entender, pelo menos?
Não conheço as razões da Suzanne, mas, durante o
julgamento, o Instituto da Psicanálise Lacaniana, que
presido, promoveu dois debates. Um deles com a
promotoria e outro com a defesa. O que senti é que todas
as categorias para julgar a Suzanne estão velhas. Só que
não há outras. É óbvio que temos que mudar esse sistema
rapidamente.
Mas não é possível, então, explicar Suzanne?
A primeira resposta que posso dar é que casos como o de
Suzanne são representantes limítrofes de um novo mal
estar dessa sociedade, um descompasso afetivo na falta
de melhor termo. Em um primeiro momento, frente à
liberdade que a globalização trouxe, ela foi muito bem
vinda mas, no momento seguinte, a sociedade voltou atrás
porque ficou apavorada com a falta de segurança que a
ausência de padrões provoca. Não dá para dizer que a
Suzanne é psicopata porque no dia seguinte ao
assassinato ela promoveu um churrasco. Não dá. Ela
provavelmente estranha a si própria. Acredito que a
sociedade não vai conseguir se defender disso dando
drogas químicas para contenção. Nem internando em camisa
de força e muito menos dizendo que há possessão
demoníaca. Acredito que a sociedade deve ver nesses
exemplos a prova de como ela não está preparada para
estas mudanças e como urge que mude o caminho que ela
tomou. Porque o que, atualmente, a crença é de que é
possível controlar a emoção humana.
A resposta da sociedade tem sido aumentar o controle
social. É esse o caminho?
De forma alguma, pelo contrário. Recentemente na França
tivemos dois casos assim, de grande repercussão, em que
pacientes recém-liberados de clínicas psiquiátricas
cometeram crimes, em duas cidades diferentes, Pau e
Paris. O Ministro da Saúde local anunciou uma coletiva
de imprensa e, quando se esperava que ele anunciasse
normas mais rígidas, ele foi contra a opinião pública e
aplicou um plano de longo prazo, milionário, que daria
possibilidade às pessoas de serem escutadas antes de
matarem outras por não suportarem mais a angústia da
existência. Foi um escândalo, porque isso ia contra toda
a perspectiva. Mas se provou a estratégia certa. No
lugar de reprimir, ouvir, assumindo a impossibilidade do
Estado de tudo controlar. É preciso diminuir o controle
e aumentar na sociedade esse lugar de escuta. Ainda é
pouco frente à urgência de respostas que possam
apaziguar uma preocupação social, mas é muito se
pensarmos que estamos corrigindo uma rota errada.
O que falta fazer?
Não estamos, por exemplo, lidando da forma correta com a
compaixão e a indignação. No ano passado,
Que espaço a amizade terá nesta nova ordem das relações?
Parece um tema banal, a amizade, não? Mas não tem nada
disso. Ela terá um papel fundamental, a amizade será o
afeto mais importante desta nova era, a era da
globalização. A amizade, que andava despretigiada, mal
vista, desconfiada, passa a ganhar um relevo grande
daqui para frente.
Você coloca a amizade neste patamar nas novas relações
sociais. Mas, quando se fala de pós-modernidade, a
impressão que se tem é exatamente a inversa, das pessoas
se isolando cada vez mais...
Está errada. É uma idéia das pessoas de mais de 40 anos
que entendem que o mundo atual está perdido, sem
princípios e sem moral, quase uma Sodoma e Gomorra
decadente. São as pessoas que acham que 'precisamos
voltar aos bons princípios'. Corremos um sério risco de
um movimento neo-reacionário complicado. Aliás, já
estamos nele, basta ver o número de bispos que nascem
igual capim nas esquinas brasileiras. Essa idéia que
você colocou é usual. Passou-se a promover a idéia de
que na pós-modernidade, como não há um padrão de
comportamento, cada um irá se virar por si, em
isolamento e narcisismo muito grandes.
E não é assim?
Mesmo Narciso precisa do outro. Mesmo se isso fosse
verdade, o narcisista precisa encontrar outras pessoas.
Não acho que a pós-modernidade leve à individualidade.
Ela leva, sim, a uma singularidade. Leva a um homem
multifacetado, complexo, pronto a diversas
circunstâncias. A flexibilidade é um dos grandes termos
deste momento. Como não se tem um padrão - como se tinha
em outros tempos e no qual a pessoa se adequava ou não -
as pessoas acabam tendo que criar e inventar sua própria
vida ou se adequa àqueles que inventam a vida por ela.
Quais são as consequências disso?
Angústia. As pessoas não sabem o que estão fazendo, se
questionam. E acabam se acovardando e se tornando
consumidoras de livros de auto-ajuda ou pagadoras de
dízimo para bispos de Miami. Ou isso ou você suporta a
angústia dessa criação da própria vida sem padrões
pré-estabelecidos. Mas essa angústia da criação faz com
que aquilo que você pensa e aquilo que você queira sejam
sempre diferentes. É neste momento que você precisa de
um amigo, aquele que pode não acabar com sua solidão,
mas suportar a solidão com você. Solidão é palavra
parecida com 'solidário'. Entendo o amigo como alguém
que não necessariamente sente o mundo da mesma forma,
mas aceita que o amigo o sinta da forma que lhe convier.
É necessário, para as pessoas não enlouquecerem, esta
presença do amigo.
Estamos falando, então, de um novo tipo de laço
social?
É, sim, um novo tipo de laço social, que não necessita
da compreensão para se justificar. Tanto no mundo
iluminista quanto no mundo moderno, estar junto era
repartir uma forma de visão, era ver o mundo de forma
semelhante. Quando falamos, por exemplo, sobre os
torcedores do Santos, sabemos que são aqueles que se
unem em torno do brasão do time. Os funcionários do
Banco do Brasil são outro exemplo. Hoje, precisamos
descobrir que tipo de laço social vai servir dentro da
quebra dos padrões. Agora, quando falo sobre os
participantes de uma festa de música eletrônica, as
raves, o que posso dizer sobre o que os une? Eles
repartem uma presença, não um sentido comum.
Como assim?
A música eletrônica não tem um sentido comum. É uma
música que não necessita de compreensão. Eu ouço uma
música com uma outra pessoa, danço com ela mas não
reparto as mesmas palavras ou idéias. Acabou o Strangers
in the night ou a discussão do 'eu sou Beatles e você é
Rolling Stones' ou 'eu sou Chico e você é Vandré', que
eram representações muito claras do lirismo de Paul
McCartney contra a dureza de Mick Jagger ou o lirismo de
Chico contra a revolta de Vandré. Não há mais, nem, a
coisa do 'você quer ser minha namorada'. Hoje, as
pessoas se juntam por um certo tempo para se permitirem,
umas com as outras, suportes de desejos distintos e, de
repente se separam, ou de repente, prosseguem.
Não há mais a tradição dos relacionamentos que podiam
ser classificados como namoro, noivado, casamento etc?
Não há mais, mesmo, a tradição. Não se fica mais junto
em nome de uma tradição, até porque isso (tradição) é
considerado um fato histórico. Não se ama mais 'em nome
de'. Aquela coisa do 'estou com ela porque prometi à mãe
dela que iria cuidar até o fim da vida' ou 'estou com
ela por causa dos filhos'. Hoje em dia ninguém mais tem
disculpa para estar ou não com tal pessoa senão a
própria vontade. As pessoas estão com as outras porque
querem. Sem explicação. Até porque se amantes resolverem
explicar porque estão um com o outro, se separam
(risos).
Não provoca insegurança, essa falta de laços?
Gera insegurança para os covardes e entusiasmo para os
criativos, para aqueles que vêm, no atual estágio, a
possibilidade de se inventar uma nova era. Somos os
passageiros de um novo mundo, temos a chance de
reinventar o amor, a educação, as novas formas de laço
social - seja no casamento, no trabalho ou na família -
e até uma nova forma de envelhecer, já que, com os
avanços da Medicina, as pessoas estão ganhando até 50
anos de sobrevida. Temos a vida toda por fazer. Muito
pouco veio pronto. Temos a possibilidade do exercício
maior do ser humano, que é a invenção e a criatividade.
Estar mal neste momento é para aqueles que gostam do PF,
do prato feito, para aqueles que preferem que alguém
lhes diga com quem vão casar, o que vão comer, para onde
vão nas férias. Só está mal hoje em dia quem gosta de
passar férias na Disneylândia.
A juventude, então, é vanguarda nesse processo?
Totalmente. É total vanguarda. Eu não os chamo mais de
adolescentes (nem gosto do termo), os chamo de mutantes.
Eles não são como seus pais, não há qualquer
possibilidade de que sejam ou venham a ser. Não temos
que ficar olhando para essa juventude com o nosso olhar
careta de adultos e dizendo que eles não têm os valores
que as gerações anteriores tinham, que não sabem o que
fazem só porque entram em uma faculdade e mudam para
outra, ou que não seguem uma religião ou que chegam
tarde em casa. Ou, pior ainda, não devemos considerá-los
superficiais porque ficam se beijando nas festas e
propagando infecções de cárie (risos). Não acho nada
disso. Estamos em um novo mundo e, se queremos entender
qual é a química e como funciona esse novo mundo, não
olhemos os velhos.
Os jovens já descobriram, então, essa nova forma?
Voltemos nossos olhos para os jovens. Não somos nós que
vamos criar os novos laços sociais, o que seria uma
pretensão digna de certos advogados que acham que vão
limitar o comportamento humano por meio de leis e
determinações de como as pessoas devem se comportar.
Isso é risível. Já existe um novo laço social, a
sociedade não espera nossa autorização. A globalização
já se deu. Em face disso, temos que ser rápidos. Temos
que sair de nossa tranquilidade, dos nossos padrões.
Precisamos saber que isso envelheceu, que nós temos
novos problemas pela frente que não têm nada a ver com
os de 30 anos atrás. E que já existem soluções. Devemos
olhar para essa juventude um pouco como Fleming
descobriu que tinha a solução da penincilina em suas
mãos e que era só pegar o que estava em estado bruto (o
bolor) e refiná-lo. A meu ver, devemos nos questionar
sobre falsos medos.
De que tipo de medos estamos, então, falando?
Por exemplo: as pessoas pensam que se não fizermos leis
mais duras os meninos tresloucados serão todos
promíscuos e irão morrer de aids. É mentira. Os índices
de promiscuidade baixaram, nos últimos dez anos, na
Inglaterra, na França, na Alemanha, na Itália e também
no Brasil, segundo estudo publicado em outubro do ano
passado. Temos é um novo tipo de amor, que não pode ser
avaliado sob o olhar dos representantes do velho tipo.
Precisamos olhar para esses mutantes, para essa
juventude, e descobrir de que maneira eles se
constituem. Temos que legitimar o que eles estão
fazendo.
Isso não pode ser confundido com permissividade?
Legitimar não quer dizer autorizar. Não estou dizendo
que os pais devem dizer 'então eu te autorizo a ir para
a balada e voltar às 6 horas da manhã'. Essa posição
também é reacionária, porque pressupõe autoridade.
O que o senhor quer dizer, então, com legitimar?
Legitimar é encontrar as leis que regem esse novo tipo
de vinculação e aplicá-las ao maior número possível de
pessoas. Porque as pessoas precisam de uma nova bula
para esse mundo. Ninguém sabe o que fazer dentro da
globalização. Mas esses moços têm um savoir-faire, eles
sabem viver neste mundo. Prova disso é a desenvoltura
com que manejam os computadores e todas as novidades que
surgem. Isso, de certa forma, enlouquece os pais e os
educadores.
O autodidatismo é maior hoje?
Essa é uma das fontes de conflitos. A geração com mais
de 40 anos foi marcada pela intermediação do saber. Uma
ação só se dá depois de um saber conquistado. Era a
prudência do iluminismo: primeiro eu sei depois eu ajo.
Não é o que acontece agora. Essa geração age e sabe
simultaneamente. Isso revela um novo mundo. E, insisto,
temos que legitimá-lo. Descobrir suas leis e com isso
acalmar os mais apavorados, explicando o quanto de
criativo tem tudo isso, em todos os níveis.
Esses jovens, que estão vivendo em um mundo tão
diferente, ainda convivem com uma escola congelada nesse
modelo de mediação de educação. Como se dá isso?
A sociedade fica se perguntando quais seriam os novos
rumos da educação, já que o modelo atual está falido. O
que acontece hoje é simples: eles não convivem, acham
uma perda de tempo total.
E para onde estes ventos da globalização vão levar a
escola?
Ela está vivendo uma crise muito grande. A escola, em um
primeiro momento, era um pouco como O Ateneu, de Raul
Pompéia, que dizia que tudo o que estava dentro da
escola prestava e tudo o que estava fora não. Depois, a
escola é a Caetano Veloso. Ou seja, não é mais ‘aqui
dentro e bom e lá fora é mau’, é ‘meu bem, meu mal’. A
época da discussão excessiva, sempre na tentativa de
aceitação universal. Foi a pedagogia do ‘eu te entendo’.
Eu diria que estamos tentando chegar em um terceiro
momento, que suporta a impossibilidade do tudo saber e
consegue orientar ou estar junto com o aluno neste
limite, não transmitindo a idéia de que tudo é possível.
Se isso não for feito, vamos continuar com o principal
sintoma da pedagogia de hoje em dia, o fracasso escolar.
Não é nem rebeldia, porque isso pressupõe que a pessoa
não está aceitando algo mas está propondo uma
alternativa. Hoje, simplesmente eles não se interessam.
Faltam as referências?
Exato. Não pode haver rebeldia quando não há
referências. Rebeldia pressupõe a existência de um
padrão. O aluno de hoje é desinteressado e, quando o
professor ameaça com a repetência ou suspensão, o jovem
não dá a menor importância e se questiona porque o
professor pensa que aquilo tem alguma. O professor diz
que se ele não passar de ano não vai entrar na
faculdade, mas o que ele reflete é que não tem certeza
nem de que entrar na faculdade é o que ele quer. O
professor avalia o aluno dentro de seu próprio universo
referencial. A pedagogia, enfim, precisa de mudanças,
assim como a psicanálise. Mas em ambas as áreas a
resistência é enorme.
Na escola o cenário é o já descrito. A vida
profissional, de certa forma conseqüência dele, também
está sendo afetada pela globalização. Não há mais, por
exemplo, aquela tradição de se formar em uma faculdade,
entrar em uma empresa e ficar o resto da vida por lá.
Quem lida mal com esse fenômeno?
Quem lida mal são os pais. Não dá para dizer que os
jovens estão sofrendo com a falta de referências, porque
eles nunca a tiveram. Só se sente falta do que já se
teve. A visão da sociedade que assegura o futuro do
indivíduo é típica do mundo que estamos abandonando. Não
falo nem, apenas, de trabalhar em uma só empresa ao
longo da vida. Acho mesmo que os novos trabalhadores não
terão uma única profissão, mas combinarão várias. Uma
principal e outras acessórias.
E quanto à questão da mudança de curso?
Há algum tempo, pouco, fiz um estudo a pedido da USP
sobre a Evasão Escolar. Já chegou desta maneira, com o
diagnóstico formado. E, na encomenda, pedia-se respostas
para questões como por que motivos os alunos entram em
História, mudam para Química, depois trocam para Letras.
Por que estão tão perdidos. Essa visão, também, está
toda errada. Não há evasão, os jovens estão é
singularizando seus percursos acadêmicos desta forma.
Esses meninos de hoje vivem uma realidade diferente das
gerações passadas. Antes, o futuro era uma projeção do
presente. O jovem ouvia dos pais que o importante era
fazer Engenharia ou entrar no Banco do Brasil. Hoje em
dia, isso é ridículo. O futuro é uma invenção do
presente. Esse moço que, na faculdade, está mudando de
um curso para outro, está na verdade inventando seu
futuro a cada momento, sabe que a vida não tem piloto
automático. Vivemos em uma sociedade de risco, não de
garantias. Não devemos mais buscar garantias, e sim
formas de não nos angustiarmos frente aos riscos,
transformando-a em uma angústia criadora.
Ainda dentro da questão da escola: o ensino superior,
especialmente no Brasil, caminha na direção oposta a
essa tendência, apostando no modelo USP de
especialização cada vez maior. Como o sr. vê essa
situação?
Vejo o ensino superior muito mal. Mas muito mal mesmo.
Infelizmente vejo um número grande de faculdades
particulares trabalharem com educação da mesma forma que
os bispos das esquinas trabalham com a aflição humana ou
que os livros de auto-ajuda trabalham essa questão. São
verdadeiras fábricas comerciais, lamentáveis, de um
nível de reflexão abaixo de zero. Essas instituições até
cumprem as exigências ministeriais para o funcionamento
do curso, como sala, currículo e títulos de professores,
mas isso não basta. Elas matam justamente o vírus
fundamental da universidade, que é a inquietação, a
pesquisa, o inconformismo e a insatisfação com a
resposta pronta. Tudo isso em nome da garantia de um
suposto título, de cursos de pós-graduação – esses
famosos MBA – que vão agregar valor ao seu currículo.
Isso no caso das universidades particulares. As
públicas estão melhores?
Não me entusiasmam mais, porque vejo nelas um arcaísmo
muito grande. É uma academia distante das novas questões
sociais do homem e que gera um saber absolutamente
inútil. Espero e luto para que a universidade tome um
novo rumo e possa ocupar o lugar devido na história, e
não se transformar na Igreja Universal cover. Quanto à
USP, que você citou, em que pese meu respeito por essa
instituição, que é de longe a melhor da América Latina,
ela poderia avançar muito mais se não tivesse tantos
pruridos de uma burocracia acadêmica obsoleta. Mesmo
sofrendo muito disso, consegue ser a melhor. Se não
sofresse, poderia estar entre as melhores do mundo.
O senhor sempre foi um crítico do estudo do genoma e
de suas promessas de cura. Hoje, trabalha em parceria
com o Projeto Genoma, da Universidade de São Paulo.
Mudou de opinião?
Você tem razão, eu critiquei muito o estudo do genoma
humano. Continuo tendo horror da visão do genoma como a
possibidade do estabelecimento de um código de vida para
as pessoas, onde haveria ligação entre determinação
genética e comportamento. As pessoas usam as pesquisas
genéticas para dar à sociedade a idéia falsa de que será
possível determinar amor, felicidade de opções do homem
por meio de suas determinações genéticas. Querem é
animalizar o homem, acham que o grande barato será o dia
em que o homem e uma vaca forem vistos da mesma forma.
Mas achei interessante encontrar, dentro da USP,
opiniões contrárias a essa visão totalitária.
O cenário que o senhor apresenta é semelhante ao de
livros como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, não?
Ocorre que, no ano passado, organizei um seminário
chamado Sociedade de Controle versus Psicanálise. O
objetivo era exatamente mostrar que, frente à
globalização, a resposta da sociedade estava sendo a de
aumentar o controle, fosse o digital, nos aeroportos e
nas portarias dos prédios. Essa sociedade de controle
iria - como acho que vai - sufocar o homem, retirando-o
do contato com o outro. É uma falsa proteção,
provisória, que ainda tem como efeitos colaterais a
perda da cidadania e o aumento da agressividade.
Voltando à discussão do genoma: como se dá sua
parceria com o Projeto Genoma da USP?
Esse é meu projeto mais importante atualmente, e é único
no mundo. O trabalho é feito com as pessoas que recebem
diagnóstico de doenças genéticas, que é algo
completamente novo. Dirijo um projeto conjunto ao
Genoma, no qual utilizo a psicanálise nos pacientes do
projeto Genoma. Está interessante porque a primeira
parte deste projeto é o que chamei de desautorização do
sofrimento.
Desautorização do sofrimento?
As pessoas têm muito medo de lidar com o novo, com o
surpreendente. E nada mais estranho do que um
diagnóstico genético, que prevê coisas que ainda não
estão ocorrendo. Antigamente você sentia alguma coisa e
ia ao médico para ver o que era. Hoje, de repente, você
não tem nada, mas alguém da família tem, você é chamado
para fazer um exame e descobre que, dali 10 anos, vai
ter uma paralisia, por exemplo. É muito maluco isso, na
cabeça do indivíduo, difícil de compreender e de
aceitar. Muitas pessoas, não suportando isso,
imediatamente vestem a surpresa com o sofrimento que a
sociedade espera. Se cria, então, uma relação muito
ruim, da compaixão na família e o paciente entra em
resignação. Essa atitude mútua piora muito a situação,
porque a pessoa se entrega à doença e, ao fazer isso, a
vida da pessoa acaba e o curso da doença se acelera.
Mostramos aos pacientes a necessidade de sairem desse
circuito da doença e entrar em uma nova experiência,
inventar uma nova forma de serem e de aproveitarem a
vida. É uma nova psicanálise.
Como foi crescer em Santos e que influência isso teve
na sua opção profissional?
Crescer em Santos me possibilitou crescer entre amigos.
Me deu também uma liberdade de movimento que não teria
em outra cidade. Pude, em Santos, conjugar os estudos
com a praia e também o esporte. Por ser pequena e uma
ilha, acho que Santos é uma cidade que sonha, que é
sempre vanguarda. No golpe de 64 eu tinha 13 anos e vi
minha Cidade perder um prefeito negro, Esmeraldo
Tarquínio, que foi substituído por um militar que o bom
gosto me faz esquecer o nome. É um turbilhão político e
também cultural, com as músicas do Gilberto Mendes e do
Almeida Prado, o Clube de Arte na Avenida Ana Costa, as
exposições de quadros do Paulo Prado, a galeria da
Cultura Americana, do CCBEU. O mar de Santos que
infinitiza o olhar, a presença do estrangeiro, pelo
Porto. A noção do intercâmbio por esse mesmo porto. Os
jardins da praia e o respeito pelo belo... Não é à toa
que existem tantos santistas que saíram da cidade e
venceram.
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