José Pacheco: "A medida de política educativa de maior impacto seria a
extinção do Ministério da Educação"
Vanda
José| 2008-05-13
Texto original -
Portugal
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Foi o principal mentor do projecto da Escola da Ponte. Com a chegada da
aposentação, decidiu abraçar novos desafios, mas desta vez do outro lado
do Atlântico. Conversa com José Pacheco, a partir do Brasil.
Para além de colaborador habitual da rubrica Aprendiz de Utopias do
EDUCARE.PT, José Pacheco já foi professor do 1.º ciclo, ou do ensino
primário como gosta provocatoriamente de afirmar, docente na Escola
Superior de Educação do Porto e membro do Conselho Nacional de Educação.
Mas José Pacheco é também reconhecido com o principal responsável pelo
nascimento do projecto da Escola da Ponte, em Vila das Aves, considerado
uma referência a nível nacional e internacional. Uma escola que assenta
num modelo de ensino inovador, onde não há turmas, nem anos, e onde cada
criança aprende ao seu próprio ritmo.
Actualmente, José Pacheco já não se encontra na Escola da Ponte. Com a
chegada da aposentação, decidiu abraçar outros desafios e afastar-se da
Ponte para que, como explica nesta entrevista, o projecto possa seguir o
seu caminho. É no Brasil que se encontra actualmente, vivendo, como
sublinha, "em permanente conspiração".
EDUCARE: Antes de mais, e para quem ainda não o conhece, como é que se
definiria? Como um professor de 1.º ciclo, um mestre em Ciências da
Educação ou como um eterno aprendiz de utopias?
José Pacheco: Creio que serei um eterno aprendiz.
E: É o fundador do projecto da Escola da Ponte. Passados mais de 30
anos, como avalia esta experiência?
JP: Que me seja perdoada uma breve referência autobiográfica: troquei a
carreira de engenheiro pela de professor, quando me apercebi de que
seria possível resgatar a missão da escola e dar a todos condições de
sucesso escolar e pessoal. Não estava equivocado, pois tive o privilégio
de encontrar uma escola chamada Ponte. Mas um projecto não tem
"fundador", qualquer projecto humano resulta de um esforço colectivo. Eu
apenas tive o mérito de desacomodar alguns professores. Depois, foi uma
questão de tempo, de muito estudo, do reforço do colectivo, de mudanças
prudentes e de muita frustração e resistência. Melhor dizendo: de
resiliência, que é a sina de todos os que, nascendo neste país, ousam
perturbar a mediocridade reinante.
Na Ponte, nunca fomos adeptos de copiar teorias. Sofremos influências
teóricas, mas testámo-las na prática. Os projectos estão sempre em fase
instituinte e as rupturas (responsáveis!) acontecem sem cessar. Trinta
anos foi apenas um tempo de começar. Talvez daqui a mais trinta possamos
"avaliar a experiência".
E: Sente-se responsável por um legado único ao nível do ensino em
Portugal e até além-fronteiras?
JP: Sinto-me colectivamente responsável. E, quanto mais longe estou da
Ponte, à medida que o distanciamento crítico me permite observar mais
atentamente o projecto, mais me convenço de que a Ponte inaugurou um
novo tempo na história da educação. Não há presunção no que afirmo: a
Ponte logrou operar uma ruptura total com o modelo dito "tradicional",
com excelentes resultados.
Mas ainda tem muito caminho pela frente. Os professores que integram a
nova equipa herdaram uma grande responsabilidade. Aquilo que, lenta e
pacientemente, foi construído carece de uma síntese fundadora de novos
passos e da criação de redes de colaboração com outras escolas onde a
mudança, lenta e discretamente, já vai acontecendo.
E: Apesar do mérito reconhecido da Escola da Ponte, poucas foram as
escolas que se atreveram a seguir um percurso semelhante. Falta de
condições, medo de inovar ou a velha resistência à mudança?
JP: Poderei discordar? Não serão poucas as escolas que mudaram
inspiradas na Ponte. Serão poucas no nosso país, mas esse facto não me
surpreende. Nós sabemos que ninguém é profeta na sua terra.
Conheço muitos professores que se interrogam sobre o (sem) sentido da
escola. E que, mais do que interrogar, agem. É bom que sintam receio e
que ajam com prudência. Nos tempos que correm, escasseiam os educadores
e sobram os detractores.
Acompanho o trabalho de muitos professores envolvidos em projectos de
mudança, inevitavelmente diferentes do projecto da Ponte, mas que
partilham da mesma intenção: transformar as escolas em espaços de fazer
dos jovens seres mais sábios e pessoas mais felizes.
Não acredito em modelos, muito menos acredito na clonagem de projectos.
Acredito nos professores que vão construindo alternativas a uma escola
obsoleta, geradora de insucesso e infelicidade.
Cada ser humano é único e irrepetível e o mesmo acontece com as escolas.
Nenhuma deverá seguir os caminhos da Ponte.
E: E que mensagem deixa para as vozes críticas ou dissidentes em
relação ao projecto da Ponte?
JP: Que continuem a criticar. Mas que o façam com conhecimento de causa.
As críticas, desde que construtivas e fundamentadas, são muito úteis
para a correcção das rotas. Infelizmente, muitas das críticas provêm das
mesmas pessoas que criticam "novos métodos" sem fazerem a mínima ideia
do que sejam esses "novos métodos".
Juntam à crítica do "eduquês" (aberração que eu também critico) um ódio
primário a tudo o que possa constituir inovação. Não conseguem entender
que o seu discurso favorece a manutenção de práticas caducas,
responsáveis pelo caos em que o sistema está imerso. Talvez creiam que,
para ser professor, basta ter formação técnica, científica. Não basta!
Se os "críticos" investissem algum tempo no estudo das (desdenhadas)
ciências da educação, talvez tomassem consciência dos disparates que
publicam.
Quando findar o tempo das críticas ignorantes e dos debates estéreis,
que essas pessoas alimentam (sobretudo na Internet) não será tarde para
mudar de rumo, mas muitas gerações terão sido sacrificadas a um ensino
sem sentido, gerador de insucesso nos alunos e de sofrimento nos
professores.
E: Já se encontra há algum tempo no Brasil. Como surgiu esta
experiência no outro lado do Atlântico? Que trabalhos/experiências está
a desenvolver? A receptividade dos professores/educadores brasileiros
tem sido positiva?
JP: Talvez porque, como diria o Pessoa, a língua portuguesa seja a nossa
pátria, a receptividade às inovações produzidas na Ponte foi
significativa no Brasil. Não é necessário traduzir...
O que mais me atrai no Brasil é o desafio. Encontrei escolas em tudo
idênticas às europeias: com grandes recursos, mas acomodadas. E, em
escolas sem um mínimo de condições, encontrei professores que não aderem
a "modismos" e que, apesar do baixo salário e das precárias condições de
trabalho, não desistem de se melhorar e de melhorar as suas escolas.
Há cerca de dois anos, senti que teria chegado o momento de permitir que
a Ponte seguisse o seu caminho sem a minha presença. E o Brasil talvez
tenha sido um pretexto (inconsciente...) para me afastar (fisicamente)
da Ponte e permitir que outros professores tomassem nas suas mãos a
condução do projecto. Sem a interferência de um velho que tem sempre
razão...
E: O caso do telemóvel que envolveu uma aluna e uma professora da
Escola Secundária Carolina Michaëlis, trouxe para a ribalta o problema
da indisciplina e da violência nas escolas. Concorda com o desfecho
final do caso (com a transferência dos dois alunos envolvidos para outra
escola)?
JP: Se eu escrevo por tudo e por nada, por que razão ainda não terei
escrito uma linha sequer sobre esse incidente? Porque já escrevi, há
vinte, há trinta anos. Aquilo que aconteceu nessa escola é a ponta de um
icebergue, o lado visível de um drama mais profundo. Lamento o sucedido
e lamento o desfecho. A transferência dos dois alunos nada resolve.
E: Como explica o número crescente de casos de indisciplina e
violência nas salas de aula? A escola pode ser um espelho da sociedade?
JP: A indisciplina é a filha dilecta do autoritarismo e da
permissividade. A violência vivida em muitas salas de aula é mais um
sintoma da degradação da instituição escola. A autoridade está ausente e
os professores parecem candidatos a martírios. Parecem não compreender a
permeabilidade da escola aos problemas sociais e o sem-sentido de uma
escola que os reproduz e agudiza. Parafraseando o Eça, muitas escolas
são sítios mal frequentados, onde a educação está ausente e a instrução
já raramente acontece.
E: A avaliação dos professores tem estado no centro de grande
contestação e polémica. Concorda com o modelo proposto pelo Ministério
da Educação?
JP: Não quero fazer coro com a maioria, mas só poderei estar em
desacordo.
Não me alongarei na resposta, nem exporei o ridículo da proposta. Direi
somente que, também na Ponte, a "avaliação" proposta pelo ME não faz
sentido. É nefasta uma avaliação que hierarquiza e divide (ainda mais)
os professores.
E: E com a política educativa do actual executivo?
JP: Existirá uma "política educativa"? Incomoda-me ver pessoas que, no
passado, considerava decentes, envolvidas agora numa tragicomédia sem
fim. No (des)governo da educação, decepcionam-me. Sinto náuseas, quando
os vejo proteger políticos que muito têm prejudicado a Ponte, só porque
são barões locais do seu partido.
Sobrevivi a dezenas de ministérios e mantenho o que disse, há mais de
vinte anos, porque o tempo me deu razão: a medida de política educativa
de maior impacto seria a extinção do Ministério da Educação. As escolas
passariam bem sem esse monstro burocrático e de cara manutenção.
E: Que balanço faz do seu percurso até ao momento actual? Que
memórias ficam passados estes anos todos?
JP: Vou definindo grandes metas e dando pequenos passos, solidariamente
acompanhando outros conspiradores. Na educação, está tudo por fazer. Não
sobra tempo para viver de memórias.
E: Por último, e para terminar, tem planos para um futuro próximo?
Ainda tem muitas metas para alcançar?
JP: Estou aposentado, mas não inactivo, não inútil. Vivo em permanente
"conspiração" e, nos tempos mais próximos, envolver-me-ei em mais um
projecto. Ajudarei alguns educadores a fundar aquilo a que,
freirianamente, se pode chamar uma "cidade educativa".
Um dia, darei notícia do que vier a acontecer...
As escolhas de... José Pacheco
Citação
(de memória) "Quando eu nasci, todos os tratados que visavam salvar o
mundo já estavam escritos. Só faltava salvar o mundo." É do Mestre
Almada Negreiros.
Livro
"Narciso e Goldmundo", de Herman Hesse
Música
As suites de Bach para violoncelo
Autor
Fernando Pessoa
Político
Mahatma Ghandi
Viagem
Foz do Iguaçu
Memória de infância
A minha mãe
Sonho por realizar
Quase todos
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