Jane Patrícia Haddad

Palestras e Conferências

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Professor morto por aluno: uma possível paranóia?

Este texto é fruto de uma inquietação a respeito de fatos presentes na nossa sociedade atual, marcada por violência e agressão. Nesta semana deparamos com a mídia noticiando sobre o assassinato de um professor de educação física por um aluno, apesar de ser esse professor extremamente querido pela maioria do meio acadêmico. É interessante notar que após atos bárbaros ouvirmos os depoimentos de pessoas que achavam aquele sujeito estranho, esquisito mas que não suspeitavam que tal pessoa poderia cometer um crime.

Subjacente a esta posição, coloca-se uma questão: o que afinal pode ser feito, pelas pessoas de uma forma geral e mesmo pelos profissionais que de alguma forma têm contato com sujeitos que muitas vezes apresentam comportamentos bizarros, encimesmamentos, timidez excessiva, intolerâncias, verbalizações agressivas e outros gestos que não caberiam a um cidadão saudável ou educado?

O que está acontecendo com nosso assombramento, com o nosso horror, com a nossa intuição que nos alertaria para a proteção, a segurança, a sobrevivência? Por que aceitamos que um colega da escola, um colega de trabalho, um vizinho ou um parente tenham atitudes que achamos estranhas, mas não suspeitamos que essas atitudes podem fazer parte de um rol de características próprias de quem está doente e necessita de ajuda? Por que nos negamos a oferecer tal ajuda, alertando a pessoa  para a necessidade de um cuidado médico ou alertando a família da pessoa?

Parto da premissa de que, se entre os nossos iguais deparamos com comportamentos que nos parecem estranhos, nem sempre os denunciamos como indícios de patologias porque, na maioria das vezes, os significamos como estravagantes e psicodélicos, ou justificamos que fazem parte do jeito de ser, da individualidade ou do estilo daquele sujeito.

Utilizar do instrumento poderoso que é a psicanálise para aprofundar no conhecimento das características estruturais, que organizam a subjetividade e as ações dos sujeitos,   buscando um olhar diferenciador e efetivo para a interpretação da realidade, permitindo-nos a crítica e decisões para intervir em circunstâncias que se apresentam legítimas, com coragem e determinação para resistir a quaisquer resistências é sairmos do lugar da indiferença para nos apresentarmos enquanto agente que faz juz ao legado freudiano.

É com essa inquietação que desenvolvo um estudo sobre a paranóia, patologia que se apresenta na maioria dos crimes inexplicados, e insuspeitadamente possíveis de serem cometidos.

Considerações teóricas:

No DSM-IV é denominada como Transtorno Delirante, e faz parte de um dos tipos de esquizofrenia. A caracteristica essencial do transtorno delirante é a presença de uma ou mais idéias delirantes, persistentes que se apresentam, principalmente com relação às atividades sociais do sujeito, se apresentam como estranhas, mas perfeitamente possíveis que ocorram na vida real (por exemplo, ser seguido, envenenado, enganado, perseguido, etc). O sujeito, muitas vezes mantêm conservados seus papéis sociais e laborais, porém, ao longo do tempo o sujeito vai apresentando importante isolamento social, deterioração das atividades laborais e pobreza nos relacionamentos. Isto se deve às crenças delirantes, porque o sujeito acredita que de fato está sendo seguido, precisa sair disfarçado ou não poderá mais sair de casa. Ainda assim, os sujeitos com transtorno delirante apresentam uma aparente normalidade no seu comportamento e aspecto quando suas idéias delirantes não estão sendo questionadas ou colocadas em jogo. Raramente há um comprometimento intelectual do sujeito.

Há vários tipos de paranóia, segundo as manifestações dos delírios, que podem ser:

a)     Erotomaníaco: se aplica quando o tema central da idéia delirante é que outra pessoa está enamorada do sujeito, referindo-se a um amor romantico, idealizado, muito mais que a uma atração sexual. Normalmente a pessoa a que se recai essa convicção ocupa um status mais elevado, sendo muitas vezes uma pessoa famosa, um chefe de trabalho ou uma pessoa que se lhe apresenta completamente estranha. Muitas vezes o sujeito com este transtorno se envolvem em problemas legais muitas vezes por importunar ou por excessivas tentativas de socorrer aquela pessoa que ele supões que o ama de perigos

b)     Grandeza: a idéia delirante é a convicção de ter algum extraordinário talento ou intuição, ou ser um descobridor importante, ou ainda manter um relacionamento com uma pessoa muito importante (um presidente por exemplo). As idéias delirantes ainda podem ter um conteúdo religioso, em que o delirante se vê como mensageiro divino.

c)     Celotípico: é predominantemente ciumento, com idéias de que o conjuge lhe é infiel. Essa crença aparece sem nenjum motivo e se baseia em inferências errôneas que se apoiam em insignificantes provas (por exemplo, roupas amassadas ou manchadas) que são guardadas e utilizadas para justificar a idéia delirante. O sujeito delirante briga frequentemente com o conjuge e procura intervir cortando a liberdade de movimentos do conjuge, seguindo-o secretamente ou investigando o suposto amante).

d)     Persecutário: o temacentral da idea delirante se refere a crença de que está sendo objeto de conspiração, está sendo enganado, perseguido, envenenado, caluniado ou ainda, que está sendo obstruído da consecução das suas metas. Pequenas trivialidades podem ser exageradas e convertidas em núcleo do sistema delirante, sendo muitas vezes delirando que alguma injustiça que lhe cometeram deve ser remediada mediante uma ação legal (paranóia querulante), apelando para os tribuinais ou outras instituições governamentais. Os sujeitos com idéias delirantes de perseguição são frequentemente ressentidos e irritáveis, podendo reagir de forma violenta contra os que acredita estar lhes causando dano.

e)     Somático: a idéia delirante se refere a funções ou sensações corporais, em que o sujeito acredita emitir odor insuportável pela pele, boca, reto ou vagina; ou que tem infestação de insetos dentro do corpo, que possui malformações corporais evidentes, ou que partes do corpo não funcionam.

f)      Tipo mixto: este subtipo se aplica quando não há nenhum tema delirante que predomine, mas há crenças infundadas dos diversos tipos acima.

Os sintomas mais comuns são problemas sociais, conjugais ou no trabalho como consequência das idéias delirantes. Frequentemente, acontecimentos casuais tem um significado especial, com interpretações que segundo o delirante, dizem ser consistentes. Muitos sujeitos com transtorno delirante desenvolvem um estado de ânimo irrável, com reações agressivas, apresentando acessos de ira ou comportamento violento, especialmente os tipos persecutórios e celotípico. Envolvem-se com comportamentos litigantes, enviando cartas de protesto ao governo e aos tribunais. Os sujeitos do tipo somático podem ser-se submetidos a exames médicos desnecessários.

O transtorno delirante pode associar-se ou confundir-se com o transtorno obsessivo compulsivo, ao transtorno dismorfico e aos transtornos de personalidade.

Ao se avaliar a possível presença de um transtorno delirante, deve-se ter em conta a história cultural e religiosa do sujeito. Algumas culturas têm crenças amplamente difundidas e culturalmente aceitas que podem ser consideradas delirantes em outros contextos culturais.

A psicanálise aborda a paranóia sob o signo da psicose. Freud utiliza o “Caso Shereber (1911), em que desenvolve suas noções centrais sobre a paranóia e a psicose. Para Freud, a psicose é um modo de afastamento da realidade em que mecanismos de defesa são acionados para dar conta da angústia do sujeito. Freud não acreditava na cura da psicose e, por esse motivo, não se empenhava em buscar uma técnica para o tratamento. Assim,  para teorizar sobre a paranóia, ele não nos traz relatos de atendimentos a pacientes paranóicos, mas utiliza dos relatos autobiográficos, escritos por Shereber. Freud se preocupava com o desencadeamento da psicose, porque segundo a sua concepção, a psicose é uma abertura do inconsciente para o mundo externo. Aquilo que o sujeito não recalca com eficiência apresenta-se como alucinações e delírios, ou seja, o fracasso do processo de recalcamento provoca o retorno do que escapou ao recalcamento na forma de sintomas, e especificamente na psicose, em forma de alucinações e delírios. Lacan refere-se aos delírios paranóicos como “aquilo que foi forcluído no simbólico retorna no real”.  Vejamos:

Segundo Freud, no complexo edípico, constituído pela tríade pai/mãe/filho circulam afetos diversos, amorosos e hostís e é essa organização edípica que estrutura o sujeito.  Na psicose, o sentimento ambivalente de amor e hostilidade que o filho muitas vezes nutre pelo pai é transferido para alguém  respeitado e admirado, lugar anteriormente ocupado pelo pai na tríade edípica. Porém, um outro fator se associa a essa transferência para a erupção da doenca: nos primórdios do desenvolvimento psíquico do sujeito a libido estaria organizada em torno de um mecanismo narcísico onde a fantasia homossexual está presente. Somente mais tarde a orientação sexual se processa e a fantasia homossexual poderá então ser recalcada ou não. No caso da orientação heteressexual, as tendências homossexuais são interrompidas. Porém, no caso da paranóia, apesar do sujeito muitas vezes ter uma orientação heterossexual, a fantasia homossexual não é recalcada porque na psicose não existe o recalque e sim a forclusão, também chamada denegação. Denegação ou forclusão é a suspensão do recalque permitindo que conteúdos inconscientes aflorem, não em formas de sintomas, atos falhos, sonhos, chistes ou lapsos; mecanismos próprio da neurose; mas em conteúdos delirantes e alucinatórios.

Assim,  o aparecimento dos conteúdos inconscientes na paranóia se apresentam como vindos de fora, como intrusão de uma ou várias idéias delirantes, acompanhadas de fenômenos corporais e que mais tarde se constituirão na construção de um delírio sistematizado. O psicótico tenta através de um delírio sistematizado, com uma história, um planejamento e um propósito, organizar o seu mundo para aliviar sua angústia. O que caracteriza a psicose é o fato do sujeito ter certeza de que o que lhe ocorre é real e verdadeiro e em função disso, tudo o que pensa ou realiza circula em torno do seu delírio.

Retomando a discussão sobre o processo edípico, no desencadeamento da paranóia a outra pessoa que para o doente é significativa passa a lhe ser aterradora. Há uma ambivalência de sentimentos que oscilam entre o amor e o ódio. A pessoa que outrora fora amada e admirada agora ocupa o lugar de alguém que lhe causa ódio e repúdio Quanto mais o paranóico admira alguém por uma qualidade ou atributo que este possua ou que o doente acredite que esse outro possua, mais ele o perseguirá. O paranóico o perseguirá porque em seu delírio sente-se perseguido por esse outro. Isso é o que Freud denomina mecanismo de projeção: o sujeito atribui ao outro um sentimento, um pensamento ou uma idéia que é sua.

No seu delírio, ele atribui ao outro tanto poder que ele teme que esse outro possa dominá-lo, invadí-lo, perseguí-lo, pois esse outro tem um poder de tudo saber. É contra essa ameaça delirante vinda do outro que o paranóico luta. Assim, na paranóia o doente dirige seus afetos para aquele que ele acredita que tudo pode, tudo vê e tudo sabe. A base do delírio paranóico é uma fantasia homossexual inconsciente, não suportada, que transforma-se em delírio de perseguição.

A possibilidade de estabilidade da paranóia é quando o sujeito, na sua construção delirante organiza um mundo de forma a poder viver nele, mesmo que este mundo exterior apresente a desorganização e a ruina do seu mundo interno. Na sua tentativa de reorganização, o sujeito afasta-se das pessoas e coisas isolando-se.  Há um desligamento da libido, dificultando o estabelecimento de laços sociais. A libido, na paranóia, é então dirigida para o próprio ego do sujeito, engrandecendo-o e tornando-o megalomaniaco. Há um retorno ao estágio do narcisismo. Ele prescinde das pessoas porque é muito superior a elas. Assim, para a psicanálise, o delírio é a tentativa de cura realizada pelo próprio sujeito.

Conclusão:

Para o desencadeamento da psicose, algumas estapas se processam no comportamento do sujeito: afastamento das pessoas que lhe são mais afetas, isolamento,falta prazer em atividades corriqueiras, atenção voltada para atividades pouco comuns ou de nenhuma utilidade prática, dificuldade de expressar as idéias de forma coerente ou organizada, criação de um mundo de fantasia afastado da realidade ou em substituição a ela,  julgamentos precipitados e sem nexo sobre determinadas pessoas ou fenômenos. São esses apenas indícios de que o sujeito encontra-se num mundo imaginário e em plena construção de um delírio que poderá irromper-se, inclusive, como homicídio.

Vale refletir que a nossa volta algumas pessoas podem estar vivenciando alguma dessas fases e passa-nos despercebido. É claro que não cabe a nós, leigos cidadãos, sairmos fazendo diagnóstico ou propondo soluções para o mundo, mas podemos, afetivamente, oferecermos nossa ajuda acolhendo e orientando sempre que se fizer necessário.

Professor morto por aluno: uma possível paranóia?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CALLIGARIS, Contardo, Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
DSM-IV - Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre, Ed. Artes Médicas, 2002.

FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides – 1911) In: Obras Psicológicas Completas. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Volume VII

FREUD, S. A perda da realidade na neurose e na psicose (1924). In: Obras Psicológicas Completas. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Volume XIX

QUINET, Antônio. Teoria e clínica da psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.