O ESTADO DE S.PAULO
DOMINGO, 1 DE MARÇO DE 2009
Lula reagiu de pronto diante das escoriações de Paula Oliveira.
Deveria ele ter pedido comprovação bioquímica de que era sangue?
Jorge Forbes*
O presidente e o chanceler foram feitos de bobos. Lula e Celso Amorim “entraram” na história de Paula Oliveira – dizem os críticos sagazes, indignados com o fato de ambos terem dado crédito àquela moça que apareceu recentemente em todos os jornais com escoriações pelo corpo, afirmando ter sido agredida por manifestantes de um grupo neonazista, na Suíça, país onde mora. Teriam “entrado” também na versão de que, em decorrência do choque, Paula abortara os gêmeos que esperava. Como os nobres dignitários não tomaram maior cuidado antes de pedir explicações ao governo suíço? Como?
Os espertos devem pensar que, ao vermos alguém sangrando, antes de qualquer coisa devemos pedir comprovações bioquímicas, pois, no final das contas, em vez de sangue, pode sempre se tratar de ketchup. É o que se aprende quando, sofrendo, alguém bate à porta de um pronto-socorro dos chamados hospitais de excelência. O primeiro pedido é a famosa carteirinha do convênio – sem ela, nada feito. E tem mais, mesmo que a dor seja lancinante – aparente, como quando se tem uma fratura, ou não –, há que se esperar a consulta telefônica ao plano, para saber se os exames porventura necessários serão cobertos. Inútil lembrar que o sistema está sempre fora do ar, e o paciente, por conseguinte, fora do lugar.
O erro de Lula e de Amorim foi induzido ao menos por dois fatores: o primeiro, o contexto. Vamos convir que não soa muito estranho, para ninguém, ataques racistas lá por aquelas bandas, mesmo que fique chato a conduta do presidente indiretamente revelar esse segredo de polichinelo: dizer que foi atacado por neonazistas na Suíça é plausível. O segundo, que é o mais fundamental, é que Paula Oliveira supostamente mentiu sobre o que não se pode mentir, uma vez que se trata de um dos poucos pontos remanescentes do cimento do laço social humano, já tão abalado: o ataque a uma mulher, e grávida, e por racismo. Não há sociedade possível sem alguns pontos intocáveis fundamentais. Citemos mais alguns exemplos: não se rouba igreja. Não se roubava, sabemos. As pessoas de mais de 40 anos ainda podem se lembrar de que as riquíssimas igrejas mineiras ficavam de porta aberta, sem temer por seus tesouros. Não se atacam frágeis pessoas idosas e nem indefesas crianças. Filhos não agridem pai e mãe. E por aí vai, ou melhor, ia. É fácil constatar quão pouco sobrou no mundo de hoje dessas obviedades do sentimento humano. Paula colaborou para que desconfiássemos ainda mais de nós mesmos, foi um desserviço.
Será que a resposta a esse estado de coisas é ficarmos todos desconfiados, bem espertos, e só agirmos frente a evidências cientificamente comprovadas, para não passarmos por tolos, imprudentes, ou emotivos? Existem muitos que assim pensam, que preconizam uma sociedade da disciplina e do controle, como cura do desbussolamento destes tempos pós-modernos, rompedores dos padrões verticais do comportamento que estabeleciam maneiras padronizadas de se portar.
Mas, assim não pensa o filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993), nem o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981).
Para Jonas, após a euforia da esperança da técnica que nos rendeu uma utopia de bem estar irresponsável, porquanto apagava a subjetividade, devemos nos preparar para o Princípio Responsabilidade, nome de seu livro do qual extraio alguns trechos. “A responsabilidade é o cuidado reconhecido como obrigação em relação a um outro ser, que se torna ‘preocupação’ quando há uma ameaça à sua vulnerabilidade.” E também: “O fenômeno do sentimento torna o coração receptível ao dever, não lhe questionando a razão e animando a responsabilidade assumida com o seu élan. É difícil, senão impossível, assumir a responsabilidade por algo que não se ame, de modo que é mais fácil engendrar o amor para tal do que cumprir o seu dever ‘livre de toda inclinação’. É natural que a parcialidade do amor possa, e provavelmente deva, cometer injustiças em relação ao extenso âmbito das responsabilidades humanas, que se encontram além dele próprio. Mas assumir a responsabilidade é sempre um ato seletivo, e a escolha daquilo que nos é mais próximo corresponde à finitude da natureza humana”.
Nesse sentido, o presidente e o chanceler foram responsáveis, pois ser responsável não exclui uma injustiça, nem quer dizer estar livre de toda inclinação, como se a pura objetividade fosse possível ou almejável. E eles também foram bobos, sim, o que não é de todo mau, de acordo ao pensamento de Jacques Lacan. Ele defende a idéia de que “os não tolos erram” – erram, no sentido de se perder –, ao contrário do que diria o senso comum. A tolice aqui deve ser entendida como o produto natural de nossa incapacidade estrutural humana de tudo saber. Somos forjados no mal-entendido que não se explica, no máximo, se administra. Falta e faltará sempre ao homem a última palavra necessária à certeza que tanto busca. Não há outra saída para ele que o Princípio Responsabilidade, pois “de nossa condição subjetiva somos sempre responsáveis”, afirmava o psicanalista. Entre a tolice possível e a certeza do esperto, necessariamente enganadora, Bravo! à tolice possível. Melhor mil vezes nos enganarmos ao socorrer uma mulher machucada e aos prantos, que vestirmos a mortalha dos espertos. Pois se o pior não aconteceu – diríamos com Jonas –, ter se enganado deveria ser considerado um mérito.
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