Por José Pacheco
Querida Alice,
No tempo em que os teus olhos se habituavam ao céu do Sul da tua infância, o teu avô atravessava esse mesmo céu no ventre de um pássaro de metal, respondendo aos apelos de aves sequiosas do fermento que faz levedar os sonhos. Nesse tempo, também as palavras voavam, mas no ciberespaço, nas asas que homens de engenho lhes deram. De modo que, cada vez que regressava do outro lado do oceano, já as ideias e sentimentos de muitos e maravilhosos pássaros haviam chegado à minha caixinha do correio electrónico (correio electrónico era um utensílio que usávamos no tempo em que vieste ao mundo). Dou-te a ler pedacinhos de uma dessas mensagens:
“Caro Zé, (…) eu continuo na minha pesquisa, juntei algumas coisas, servirão bastante para colocar "a pulga atrás das orelhas dos professores". Quem sabe eles não dão o famoso pulo do gato e reinventam formas de compreender o que está acontecendo com seus alunos? Veremos. É impressionante como os dirigentes dessa educação brasileira ainda não perceberam por onde se vai a Roma! É mexendo com o corpo e a alma dessa criançada que eles vão. Só o governo é que não vê. Finalmente digitei o texto. Aí segue.
A “escola de uma nota só” só recebe alunos que toquem a escala de dó. Os professores só entendem quem canta num mesmo tom. Essa escola não consegue entender quem aprendeu música na rua, no campo, ou quem não aprendeu música nenhuma. Felizmente, alguns professores já aprenderam a ouvir diferentes melodias e sensatamente construíram outros sons. Mesmo assim, para a grande maioria a demais música ainda soa incompreensível, necessitando de um ajuste na melodia. Dizem que estas crianças têm uma forma diferente de aprender a cantar e até – quem sabe! – de pensar.
Falam de uma dificuldade articulatória que, por conta desta palavra feia, é necessário um método todo especial. Tenta-se juntar essas crianças, se possível reagrupando-as num mesmo tom, para que uma educação especial seja cuidadosamente a elas ministrada. Nela se prepara uma pauta especial e um maestro especializado. Vão continuar com a música meio fora de tom, mas não haverá afinados por perto para provocar, para mostrar o quanto eles desafinam. Mas para muitos educadores esta história está tomando outro rumo. Educadores como nós, que acreditamos em uma educação especial para todas crianças, juntas, trabalhando as diferenças e igualdades. Optando pela vida tal qual ela é, sem redomas.
Estamos lutando pela inclusão de todos os alunos com alguma deficiência, mas não nos esquecemos milhares de alunos que são expulsos dessa mesma escola, que, insistimos, é para todos. Nossa escola não está preparada nem para as crianças consideradas normais, muito menos para as pessoas com deficiência. Por que queremos uma escola onde afinados e desafinados façam parte da mesma orquestra? É porque acreditamos que todas as crianças têm o direito a crescer em ambientes o mais livres possível e juntas, independentemente de raça, credo ou capacidade intelectual. Queremos uma escola preparada para ouvir todas as músicas de variados tons. É nela que realizamos nosso exercício de cidadania, onde vivenciamos e incorporamos os valores sociais e morais, através da cooperação entre os indivíduos. Onde, de facto, a afinação da orquestra acontece. E, como já dizia o poeta, “no peito dos desafinados também bate um coração.”
Esta sensível mensagem foi-me enviada pelo beija-flor que habitava o frágil corpo de uma mulher, e terminava assim: “Um grande beijo e toda a paz para você. Nos veremos. Susana.”
“Nos veremos” – disse a Susana. Mas não mais nos voltaríamos a ver. Decorridos dois meses, esse frágil beija-flor iria deixar o nosso mundo mais pobre pela sua ausência. A Susana soube ocultar a doença que a condenava a partir demasiado cedo. Até ao fim, pôs entusiasmo em tudo o que fazia. Até ao fim, buscou a “escola policromática” a que se referiu na interpelação que me fez no decurso de uma conferência.
No final dessa “fala” (como chamam às conferências no Brasil) que o teu avô fez sobre a escola das aves, disse-me que havia reparado no modo peculiar com que eu me despedia das pessoas: “Até logo”! Sublinhou que um “até logo” tanto poderia significar que nos voltaríamos a encontrar mais logo, nesse mesmo dia, ou que nos encontraríamos mais tarde… ou na eternidade.
Sentindo aproximar-se o tempo de partir, a Susana vivia intensamente aquela despedida, como se fosse a derradeira. Após um longo silêncio, de um olhar de dizer e não dizer, fitou-me longamente e repetiu a saudação: “Até logo”! Que distraído eu estava! Absorto nas coisas que consideramos importantes, ignorante do drama, respondi, natural e laconicamente: “Até logo”!
Há humanos seres, querida Alice, que vivem como pássaros. Que, de tão belos, espalham em seu redor um doce perfume que os resgata da lei da morte, uma fragrância que fica a pairar sobre a terra dos pássaros muito para além do tempo de viver. A Susana partiu discretamente, numa migração sem regresso. Por ter vivido em harmonia com a respiração dos pássaros, mora agora numa estrela, ou habita a grande catedral do espírito. As notas da sua escala em arco-íris, harmoniosamente se subdividiram em meios e quartos de tom. Multiplicaram-se. Da claridade da sua alma transmigrada partiram raios de luz em todas as direcções, num S.O.S. captado por corações puros de pássaros disponíveis para entoar novas melodias e interrogar as “escolas de uma nota só”.
Até logo!
O teu avô José
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