A música aparece explicitamente na obra de Winnicott em termos muito interessantes.
Um estudo do valor da música para D.W.Winnicott deveria merecer uma dedicação bem maior do que a que me é possível no momento. Farei, pois, uma despretensiosa abordagem introdutória, uma espécie de ‘cartão de visitas’. Um dia, espero poder realizar um estudo mais extenso do tema, pois tanto a fonte, quanto os destinatários e o tema, o merecem.
Gostaria de começar por algo que sempre ‘ouvi dizer’, mas de que não mais localizo a fonte. É que Freud não gostava muito de música. Não tinha, o velho mestre, muita paciência para com essa arte. Sabe-se que viu a ópera "Carmen", em Paris, que muito o impressionou. Gostava muito também do "Don Giovanni", de Mozart, mas "A Flauta Mágica", por exemplo, não lhe agradou tanto. (Cf. Jones, "Vida e Obra de S. Freud", Imago.) Ele era amigo do compositor Schoenberg, e tratou de Gustav Mahler, mas não encontrei menções à obra dos dois. Fica-se, por fim, com a impressão de que para Freud a música era um passatempo ‘menor’.
Foi muito bom encontrar, quando eu já não estava mais procurando, uma referência textual a esta questão. Em "Lendo Freud", Peter Gay publica um interessantíssimo ensaio a respeito da obsessiva busca de Freud pela verdadeiro autor das obras atribuídas a Shakespeare. A certa altura, analisando a forma pela qual Freud se interessava pelas obras de arte, Gay diz: "Num artigo anônimo [o "Moisés de Michelangelo", assim publicado primeiramente em Imago em 1914, tendo Freud assumido a autoria somente em 1924] Freud se descrevia mais como um leigo que como um conhecedor de arte, alguém que se sentia ‘mais atraído pelo tema de uma obra de arte que pelas suas propriedades técnicas ou formais’. Daí a música ser algo quase inacessível para ele, pois, como confessava, só conseguia obter prazer de uma obra de arte se, depois de contemplá-la por algum tempo, conseguisse ‘captá-la à minha maneira, isto é, compreendendo os meios pelos quais ela provoca uma determinada impressão.’ Ele atribuía a sua incapacidade de apreciar aquilo que não conseguia compreender a ‘uma maneira de pensar racionalista, ou talvez analítica.’ Não é muito fácil deduzir, pois, que Freud, o homem, era - como se diz hoje em dia - regido pelo hemisfério esquerdo do cérebero. Ele era fascinado pelo sentido, e sabemos que na música há sentido de modo apenas remotamente indireto. Seu reino era o reino da palavra, e não há dúvida de que, nesse reino, ele foi um soberano de imenso poder e vastíssima sabedoria. Mas a música não fazia parte de seus interesses pessoais.
Já Winnicott tinha, na música, uma companhia quase inseparável. Ele adorava Bach. Suas referências aos últimos quartetos de Beethoven só podem comparar-se à suprema admiração que Freud tinha pelo "Fausto" de Goethe. Tivesse eu um pouco mais de tempo e menos preocupações, tentaria fazer uma reflexão sobre a personalidade dos dois mestres, a partir dessa sua relação com a música. É uma idéia tentadora, mas para mim impossível agora. Winnicott tocava piano, e sempre alegrava as festas e reuniões, e na última década de sua vida aderiu inteiramente aos Beatles, de quem tornou-se um grande fã - tinha todos os seus discos. (Quando eles surgiram, ele tinha já mais de sessenta anos. Todo o mundo foi fã dos Beatles aos 14 anos. Mas beatlemaníacos sexagenários não eram tão frequentes assim...) (Histórias contadas por Claire Winnicott.)
Pelo que sei, Freud prezava muito a seriedade, apesar de ter sido um grande contador de piadas. Já Winnicott era basicamente brincalhão, ainda que inteiramente sério quando era o caso. A poesia com que Freud se deleitava era a ‘Grande Poesia’, se assim se pode dizer. Sua educação clássica e germanófila não foi imposta, foi adquirida com prazer. Winnicott gostava dos clássicos, evidentemente, mas saboreava com frequência a poesia lírica de autores menos ‘grandes’. (Era a Claire que lhe contava os poemas, enquanto ele lhe tocava as músicas...)
Mas vamos ao que interessa. A música aparece explicitamente na obra de Winnicott em termos muito interessantes. Ao refletir sobre a vida intra-uterina do bebê, ele se refere à possibilidade nada desprezível de que os sons corporais da mãe seriam percebidos e registrados pelo feto. Os batimentos cardíacos, a respiração, os ruídos produzidos pelo processo digestivo, e certamente a voz, são considerados por como presenças inevitáveis no incipiente sistema sensório do feto. Tanto assim é, que ele diz ter observado bebês brincando de ‘acertar seu ritmo respiratório com a frequência cardíaca (por exemplo, respirando uma vez a cada 4 batimentos cardíacos). Algum tempo depois é possível encontrá-lo (ao bebê) lidando com a diferença entre o seu ritmo respiratório e o da mãe, procurando talvez criar situações de relacionamento baseadas primeiramente numa respiração de frequência dupla ou tripla’. ("Natureza Humana", pág. 168).
Mas não é só. Duas páginas antes, ao falar da questão tão angustiante do parto anormal, Winnicott diz algumas coisas que, ocorre-me, seriam de especial importância para os musicoterapeutas.
‘Com (tudo) isto, quero dizer que o bebê tem uma série de impulsos e que a progressão em direção ao nascer surge no interior da capacidade do bebê de se sentir responsável. Sabemos obviamente que o nascimento foi provocado pelas contrações uterinas. (Mas) Do ponto de vista do bebê, foi o seu próprio impulso que produziu as mudanças e a progressão física, em geral começando pela cabeça, em direção a uma nova e desconhecida posição. (...) Estou presumindo, portanto, que no nascimento normal não há antecipação nem adiamento. (...) A variável mais importante aqui é o adiamento, muito frequente nos processos de parto pelo fato de, em nossa cultura, as mães começarem a ter bebês um tanto tarde. Isto, somado às inibições típicas da civilização, acrescido ainda do fato representado pelas dimensões da cabeça do bebê humano, produz um estado de coisas no qual podemos esperar uma elevada taxa de partos anormais. Ligeiros graus de adiamento superiores à capacidade do bebê de tolerá-los devem ser bastante comuns, e clinicamente é possível encontrar aqui a base para um interesse intelectual na questão do tempo, do parcelamento do tempo, e do desenvolvimento de um senso de timing.
‘Muitos seres humanos trazem memórias corporais do processo de nascimento, como um exemplo marcante de um adiamento para além da compreensão, já que para o bebê que reage à intrusão de um parto adiado não há precendentes nem unidades de medida possíveis pelas quais mensurar o adiamento ou prever as consequências. Não há meios de fazer o bebê saber, durante um parto demorado, que meia hora ou algo equivalente será suficiente para resolver o problema, e por esta razão o bebê é apanhado por uma espera indefinida ou ‘infinita’. Esse tipo de experiências dolorosas fornece uma base muito poderosa para coisas tais como a questão da forma na música, onde, sem a rigidez da moldura, a idéia do fim é mantida diante do ouvinte desde o início. A música sem forma aborrece. E a inexistência de formas é infinitamente enfadonha para aqueles que se sentem particularmente aflitos por esse tipo de ansiedade, por conta de adiamentos impossíveis de compreender ocorridos em sua primeira infância. A música dotada de estrutura formal clara é reasseguradora em si mesma, para além de seus outros valores musicais propriamente ditos.
‘Este é um exemplo bastante sofisticado. Muitas pessoas não conseguem utilizar a forma para reassegurar-se contra a sensação do infinito. Para estas, é necessária uma programação rígida, baseada em marcações rigorosas comandadas pelo relógio, para não serem avassaladas pelo aborrecimento. A idéia de um adiamento infinito deriva muito provavelmente de um processo de nascimento não inteiramente normal, tornando especialmente importante para certos bebês a habilidade de adivinhar as probabilidades mentalmente, de modo a poderem prever a hora da comida baseando-se nos sons que vêm da cozinha, ou tolerar uma eventual demora pela compreensão das razões que impedem a sua mãe de ser pontual.
‘No processo de nascimento ocorre essa grande mudança devida ao início do ato de respirar. Possuo evidências provenientes do trabalho clínico que mostram que o bebê pode se tornar consciente da respiração da mãe, no sentido de perceber os movimentos abdominais ou as mudanças rítmicas de pressão e ruído, e como após o nascimento o bebê pode vir a necessitar de um reatamento do contato com as funções fisiológicas da mãe, especialmente sua respiração. Por esta razão, acredito ser provável que certos bebês precisem do contato pele a pele com a mãe, e especialmente da sensação de serem movimentados pelo sobe e desce de sua barriga. É possível que para o bebê recém-nascido a respiração significativa seja a da mãe, enquanto sua própria respiração acelerada não tem sentido algum, até que esta comece a se aproximar da frequência do ritmo respiratório da mãe. Com certeza muitos bebês, sem saberem o que estão fazendo, brincam com ritmos e contra-ritmos...’
Fiz questão de citar tão longamente o texto winnicottiano, porque pareceu-me que a profusão de detalhes significativos não poderia ser suprimida. Sei, por meu contato com a musicoterapia, que uma das palavras chave nesse tipo de trabalho é o termo ‘regressão’, indicando aquilo que em psicanálise se refere à retomada de experiências primitivas, desenterradas do fundo da memória para servirem de base sólida para o esforço de retomar o processo de crescimento alguma vez interrompido, ou prejudicado. Sobre isto, Winnicott tem obviamente muitíssimo a dizer, pois suas formulações sobre o verdadeiro e o falso selves são conhecidas de todos.
Que a música seja uma linguagem não verbal, por isso especialmente apropriada para estabelecer contato com o verdadeiro self pouco amadurecido, escondido no fundo do falso self, nada tem de novidade. O que gostaria de acrescentar aqui, é uma outra dimensão da teoria winnicottiana, não tão conhecida quanto a questão do verdadeiro self. Trata-se do conceito de ‘Espaço Transicional’. Todos conhecem as formulações de Winnicott sobre o ‘objeto transicional’, o mais que famoso ursinho de pelúcia que certas crianças carregam como se fossem quase partes do próprio corpo. A natureza especial desse objeto, sempre um objeto físico (e às vezes uma pessoa), é que ele é vivido pela criança como se fosse ao mesmo tempo um produto de sua fantasia. Ou seja, o objeto transicional está a meio caminho, digamos, entre uma imagem de sonho e um objeto material propriamente dito. Melhor dizendo, ele é as duas coisas ao mesmo tempo, ainda que filosoficamente isto pareça uma impossibilidade. Essa é, porém, a verdadeira ‘natureza’ do objeto transicional, constituindo-se ele, portanto, num paradoxo.
Esta idéia foi sugerida por Winnicott pela primeira vez em 1951. Já no fim da vida, em 1967, ele publicou um trabalho no livro "O Brincar e a Realidade", denominado "O Lugar da Experiência Cultural", em que a idéia do objeto transicional foi levada às suas últimas consequências. Pouca gente notou, até onde me foi dado saber, que esse trabalho inscreveu Winnicott no mais moderno contexto da ciência atual, com suas formulações cada vez menos mecânico-racionalistas, e cada vez mais poético-oníricas. A velha distinção freudiana entre princípio da realidade e princípio do prazer, com a qual ele próprio já havia derrubado definitivamente o mito do ‘homem racional’, foi por sua vez abalada pela Física contemporânea, que observa a "realidade" com olhos cada vez menos ‘realistas’, cartesiano-newtonianos, e cada vez mais zen-budistas. (Os papos do Capra podem até ser exagerados, sei lá, mas certamente não são disparates).
Não sei se Winnicott estava consciente de que o ‘espaço transicional’ - tudo aquilo que não é nem sonho nem pedra, e no qual inscreve-se o total da experiência propriamente humana, no sentido social da palavra, ‘batia’ com essas novas formulações dos físicos a respeito da ‘imaterialidade da matéria’ e da indistinção radical entre observador e observado, entre causa e efeito, entre agora, antes e depois. A atemporalidade e a não-contradição do insconsciente, típicos até então apenas do inconsciente com seu ‘princípio do prazer’, passaram do porão à sala de visitas, e tornaram-se respeitáveis presenças na mais sizuda assembléia de sábios. O fato é que, lendo esse seu trabalho, onde ele fala principalmente de ‘cultura’ no sentido estético da palavra (artes, etc.) mas deixa claro que a coisa não fica só nisso, (e eu a estendo para o resto da experiência humana), surge à nossa frente uma clareza de entendimento do fenômeno sócio-cultural que repõe o indivíduo propriamente dito no interior de um contexto ‘transicional’, onde uma das metades vem de fora, na forma da assim chamada ‘cultura’, e a outra vem de ‘dentro’, sob o nome de ‘criatividade’, desaparecendo assim o velho mito da dicotomia entre o ‘interno’ e o ‘externo’, entre o ‘subjetivo’ e o ‘objetivo’.
É essa forma singular pela qual cada um acolhe o seu quinhão de ‘cultura’ e a transforma quase sempre numa cultura própria que gera a individualidade. O conceito de espaço transicional apaga as fronteiras existentes entre os antigos compartimentos ‘objetivo’ e ‘subjetivo’ (embora não os torne uma única e mesma coisa). Nesse território novo, com o qual Winnicott renomeia a área humana-social da nossa vida, haveria dois habitantes permanentes: a Religião, e a Arte. E ele afirma, para dar maior consistência às suas alegações: ‘Nessas duas regiões, o homem volta e meia pára e descansa um pouco de sua eterna tarefa de discernir entre a ‘realidade interna’ e a ‘realidade compartilhada’.’ ("Natureza Humana", pág. 127)
É claro que existem as ‘realidades compartilhadas’, conforme as denomina Winnicott, de modo que a ninguém cabe contestar a validade de um contrato assinado, com firma reconhecida, nem questionar a diferença entre um documento físico desse tipo, onde o ‘sonho’ de duas ou mais pessoas é transformado em ‘realidade’, e o papo inteiramente onírico e descompromissado de dois amigos bêbados jogando conversa fora num botequim da esquina. Para tanto, a sociedade constrói todo um edifício de leis e regulamentos, e ‘combina’ que um homem vestido do que passamos a chamar ‘uniforme de policial’, com carteira de identificação reconhecida por quem a expediu, terá o direito de bater com seu bastão de madeira (ou borracha, tanto faz, desde que seja bem ‘real’...) na cabeça daquele que se negar a reconhecer essa sutilíssima diferença.
Temos, portanto, que reconhecer essa diferença, mas não devemos perder a perspectiva e imaginar que o contrato é mais ‘real’ que o papo dos dois amigos. Não. De ‘real’ aí entra apenas o cassetete do guarda, ou a grade do xadrez, ou o rombo na nossa conta depois de paga a multa. O resto é, haja o que houver, convenção social, e se somos melhores cidadãos quando reconhecemos as decisões coletivas, tornamo-nos um perigo para a sociedade quando levamos longe demais a ‘brincadeira’ - de que certas facetas da cultura são ‘realmente’ reais, enquanto outras não passam de ‘delírios’.
É nesse espaço que as coisas se passam, entre os homens. E ele é transicional porque se situa entre, é uma transição entre a fantasia e a pedra. (A pedra, por sua vez, só é pedra para o olhar humano. Do ponto de vista do trator, nem toda pedra merece esse nome, e do ponto de vista da dinamite, ou do raio laser, nenhuma. Mas enquanto as pedras forem mais duras que as nossas cabeças, tenderemos a chamá-las de ‘pedras’, independente do que dizem os físicos ou os geólogos.)
O espaço transicional tem, porém, uma característica muito especial: ele não existe in natura. Ele próprio é uma criação, uma criação do homem, muito parecido com o que Bachelard chama de logosfera, uma bela expressão que designa o âmbito em que vigem as palavras. ‘Por de Sol’, por exemplo, é um fenômeno que ocorre exclusivamente na cabeça de quem o nomeia. No entanto, quando esse alguém o nomeia, e outro, que olhava para outro lado, por acaso o vê, saem ambos dizendo para quem se interessar: ‘Puxa, vimos um por-de-sol tão lindo...’ E os outros acreditarão que, de fato, esses dois viram alguma coisa que estava lá para ser vista. Pois essa é a logosfera, a esfera em que as palavras voam de uma orelha a outra, dizendo coisas. Esse é justamente o espaço transicional, creio eu. Mas esse espaço, diz Winnicott, só existe se e quando o homem - o indivíduo - o cria. É, portanto, um espaço potencial, que só passa a ser atual após ter sido criado por um indivíduo. E essa criação se dá, novamente, entre, e agora entre o bebê e sua mãe.
Winnicott descreve o processo: No momento em que o bebê, que está junto à mãe, e que (como verificamos tantas vezes, ao longo das psicoterapias) percebe a mãe como parte dele, como algo criado por ele, a ponto de não lhe fazer sentido a idéia de que ela existe em si mesma, quando pois esse bebê faz um gesto qualquer ou percebe alguma coisa e lhe dá sentido, registra-a, tem uma experiência, nesse momento essa experiência ao mesmo cria o espaço potencial e nele se inscreve. E é por inscrever-se que ela o cria. Exemplo: Quando mergulhamos a mão fechada na água ensaboada, e depois a abrimos, entre os dedos que antes estavam juntos, e que agora se separam, surge uma película de sabão. A película surge porque as características químicas do sabão dissolvido em água permitem que as moléculas permaneçam presas uma à outra, formando redes extensas, mas muito finas. Mas é a abertura dos dedos que cria a película, que antes existia só em potência.
Assim ocorre também com esse espaço potencial. Ele é criado no momento mesmo em que a criança tem uma experiência que nele virá a inscrever-se. E a segunda experiência o ampliará, e assim por diante, e com isso o bebê vai empilhando experiências entre ele e a mãe. E com isso ele se separa dela, pois esse espaço, ao surgir, cria uma distância entre ambos. Entendamos bem: Ao produzir - e assim ter - uma experiência pessoal, o bebê cria com isso um espaço entre ele e a mãe, e assim constrói uma distância, uma distância que o separa da mãe. Ele, então, constrói a si mesmo ao mesmo tempo que constrói a distância entre ele e a mãe. E assim, diz Winnicott, o bebê vai se separando da mãe, interpondo experiências pessoais entre ele e a mãe, mas na medida em que essas experiências começam em seu mundo interno e terminam ali onde o seu mundo interno abarca a própria mãe, esse espaço potencial que vai surgindo, vai sendo construído, ao mesmo tempo É A LIGAÇÃO ENTRE O BEBÊ E A MÃE.
O famoso livro "Simbiose e Ambiguidade", de Bleger, uma das grandes obras da escola kleiniana, fala da incapacidade do indivíduo não amadurecido de viver a dúvida, a incerteza, a escorregadia probabilidade. Só com o amadurecimento, isto é, a separação, é que a ambiguidade, a flexibilidade, a incerteza podem tornar-se toleráveis. Esta foi, sem dúvida, uma grande contribuição de Bleger, mas agora surge, com essa noção winnicottiana do espaço transicional, uma explicação teórica talvez mais apropriada para o fenômeno descrito por Bleger: Pois no espaço transicional O PARADOXO É A LEI, não é uma exceção ou um ‘caso’. A ambiguidade de que fala Bleger é justamente a ambiguidade do paradoxo, a capacidade de conviver com o ‘talvez’, a capacidade de existir sem o poder de controlar todas as variáveis. E o paradoxo só é possível no interior do espaço transicional, criado pela atualização do espaço potencial. E esse próprio espaço é por sua vez paradoxal, pois é o espaço que simultaneamente liga E separa.
Tudo isto vem para explicar o conceito de ‘espaço transicional’, esse espaço onde, na verdade, passamos toda a nossa vida. (Se, por um lado, a fantasia inconsciente não faz parte do espaço transicional, sendo um espaço eminentemente privado, o fato é que ela tampouco pode ser chamada de ‘pessoal’, já que a própria pessoa tem tão pouco acesso a ela quanto os outros, e às vezes até menos, quando pensamos no caso do terapêuta.) E vem para tornar mais legítimas ainda (se é que precisava) essas duas idéias winnicottianas tão utilizadas na musicoterapia, mas a meu ver mais conhecidas por sua eficácia que por sua origem: as idéias de regressão e da criação de um espaço apropriado para que a mesma ocorra.
Aqui entra (de novo) a música, como instrumento de trabalho. Como psicanalista, eu também uso música em meu trabalho, e gostaria de explicar o que digo, pois não é algo óbvio. Quando um paciente entra em meu consultório, e depois de cumprimentá-lo eu fico quieto e não digo nada até ele começar a falar (com algumas exceções, em situações muito especiais), não tenho dúvida alguma de que esse meu silêncio, sendo inteiramente voluntário e conscientemente produzido, é ‘música’. Música num sentido primário da palavra, um conjunto (embora vazio) de sons coerentes entre si. É um silêncio ao mesmo tempo artificial (na medida em que eu evito rompê-lo) e natural (na medida em que nenhum som é artificialmente ‘produzido’), e a tradição psicanalítica atribui a ele grande importância. Antigamente, justificava-se a produção desse silêncio como forma de criar um ambiente ‘impassível’, ‘não falsamente acolhedor’, diferente da situação social ‘normal’, criando uma situação atípica à qual o paciente teria que reagir com aquilo que mais verdadeiramente o caracterizava. Era esta a forma clássica de induzir a ‘neurose de transferência’. Atualmente, esse silêncio é visto como a criação de um ambiente facilitador, como dizia Winnicott, capaz de permitir ao paciente ‘ouvir’ a si mesmo de forma mais direta, e comunicar-se com o terapêuta a partir de um nível interno mais verdadeiro, ainda que nem todos os pacientes consigam agir desta maneira, tornando-se às vezes necessário ‘ajudá-lo’ um pouco.
Outro aspecto ‘musical’ no meu trabalho consiste em falar com cada paciente numa linguagem que a mim parece ‘afinada’ com a sua. Não digo sempre o que penso na minha língua, como se o psicanalista fosse uma espécie de médico que a cada paciente receita o remédio apropriado, mas os nomes das doenças e dos remédios são sempre os mesmos, independente do doente e da doença. A eu ver, cada paciente vem me ver em busca de si próprio, não de mim, e eu é que devo adaptar-me a ele, não ele a mim. Sigo, pois, o ensinamento do Jazz, criando sempre um acompanhamento apropriado para a melodia tocada pelo paciente, em vez de seguir o caminho da música clássica, onde há pautas e regras escritas, e onde aquele que ‘desafina’ deve aprender a ‘tocar direito’. Mas a música propriamente dita não faz parte de meus instrumentos de trabalho, ao menos não por enquanto. Diz uma musicoterapeuta amiga minha que um dia eu chego lá. Por enquanto, ainda não cheguei.
E quanto à música propriamente dita, depois de tudo que falei de Winnicott, creio que as reflexões a seguir se tornarão evidentes por si mesmas.
A música em si, essa sequência de estímulos sonoros que, por lhe atribuirmos valor estético (se bem que nem todos concordem quanto a isso, em todos os casos) chamamos por esse nome, é um dos habitantes privilegiados do espaço transicional. Por alguma razão (Chomsky explica?) o cérebro do bicho homem tem uma vocação para a música, assim como para a linguagem. Outros bichos também a apreciam, ainda que não tenham tanta facilidade em apreciar a linguagem. Há algo nessas sequências de sons que os estudiosos estudados por vocês certamente analisam bem melhor do que eu. O que quero, no entanto, dizer a vocês enquanto psicanalista é que a música é um dos elementos de maior penetração nesse que Winnicott chama da espaço transicional. Ou seja, a música é um dos elementos que mais fundo penetra nesse espaço, que mais perto chega do espaço pré- transicional, onde se localizam as fantasias mais internas e mais pessoais do indivíduo. Talvez porque, sendo esta uma das mais antigas descobertas do homem sobre a psicologia do bebê, é ainda no útero de sua mãe, e portanto inteiramente fundido a ela, que o bebê inicia a sua aprendizagem musical. Que a voz gravada da mãe acalma bebês aflitos é sabido. Que a voz da mãe cantando uma canção de ninar é o melhor remédio contra a aflição infantil também é sabido. Portanto...
Sendo uma forma de comunicação, e não só um ornamento sonoro - já que não se trata de ‘barulho’ - e sendo uma comunicação não verbal, a música se presta lindamente para penetrar sorrateiramente (isto é, sem dor) nas defesas mais primitivas do paciente, buscando estabelecer contato com o ser que se esconde lá dentro, e que é mais primitivo ainda. Aqui não se trata de estimular, mas bem ao contrário, de tranquilizar, de pacificar. Penso numa ‘Sonata ao Luar’ de Beethoven (quando muitíssimo bem tocada), ou num daqueles belíssimos ‘poemas sem palavras’ do Fregtman, para exemplificar o que quero dizer com ‘pacificar’. É óbvia a associação de certas melodias (no estilo ‘largo’ ou ‘adagio molto’) com os sons primordiais do interior do corpo da mãe, principalmente de sua voz como deve soar no interior do líquido amniótico. Certos ritmos e notas muito solenes com certeza criam um ambiente mental tranquilizador, na medida em que levam a pessoa a sintonizar com algo que, por sua lentidão, relaxa os ritmos internos do ouvinte e, no melhor dos casos, reduz sua tensão. Obviamente, recria-se nesses momentos o clima do colo materno, e ressurge um sentimento de proteção e amparo - por oposição ao clima persecutório da separação e do desamparo.
Penso também na música como um ‘objeto transicional’ por excelência, por um lado o grande ‘objeto transicional’ da pré-história mais remota, pois nada impede de imaginar que, antes de terem sido inventadas palavras suficientes para permitir uma conversação, as pessoas naquelas eras de muito medo e pouca paz (‘A Guerra do Fogo’, lembram?) talvez se comunicassem, quando juntas, tartamudeando alguns sons ‘musicais’. Nada impede de imaginar, pois, que a música (o canto) antecede a invenção, se não da palavra, ao menos da conversa digna desse nome. A profissão de ‘contador de histórias’ ao redor do fogo talvez seja posterior à profissão de ‘cantador de melodias’ na escuridão da caverna.
A música é, ao mesmo tempo, o grande objeto transicional de gente da mais sofisticada intelectualidade moderna, e não penso, obviamente, nos músicos profissionais, mas em gente como Albert Einstein, Pablo Picasso, José Saramago e Ingmar Bergman, e tantos políticos e cientistas, e também industriais e artistas de outras áreas, e até mesmo, hum, eu. Isto para não falar do povo como um todo, de todos os povos, que, se prestarmos atenção, vivem cantando ou ‘tocando’ em pensamento alguma melodia. Ou seja: a música vem de fora, muitas vezes, mas ao reproduzí-la, e também ao ouví-la, nós na verdade a ‘criamos’, e não apenas ‘re-criamos’. O músico profissional é que ‘re-cria’, pois aprende e exercita-se e está sempre consciente de que há um ‘verdadeiro’ autor do que ele está tocando. Nós, reles amantes da música, quando cantamos ou ‘tocamos’ uma melodia mentalmente, ou no instrumento, e mesmo no aparelho de som, vivenciamos claramente o prazer de inventá-la de novo, e é precisamente esta a definição winnicottiana do objeto transicional: algo que não podemos definir como tendo sido encontrado, pelo simples fato de que seu valor é dado pela experiência de o haver inventado. (De que outra forma pode se explicar o prazer que tanta gente (inclusive eu) tem em gravar uma música ou uma série, ou comprar uma fita ou disco para depois exibí-los aos amigos como uma conquista pessoal?) E não há melhor forma de definir a experiência musical que esta, mesmo quando ouvimos outros tocarem ou cantarem. Pois a música ressoa ‘lá dentro’, como se estivesse sendo produzida, na verdade, ali. (Isto, obviamente, é muito diferente de meramente ‘ouvir’ música.)
A música é pois, uma ponte entre o mundo interno, do eu mais pessoal e intransferível, e o mundo externo, onde compartilhamos a ‘realidade’ com os outros. Se, para Freud, o sonho era a ‘estrada real para o inconsciente’, a música é a ponte que leva ao eu mais profundo e verdadeiro. E não vale dizer que o sonho vem de dentro para fora, enquanto a música vai de fora para dentro, porque não se pode dizer com convicção que a música realmente segue de fora para dentro: ou uma música entra, e nesse caso ela já está dentro, mesmo que esteja sendo ouvida pela primeira vez, ou ela não entra, e então nada acontece.
Utilizá-la para estabelecer contato com esse eu interno, principalmente quando o mesmo se encontra oculto sob as defesas do falso self, é não só legítimo enquanto prática, mas legitimado teoricamente pela contribuição de Winnicott. Surgiu-me, enquanto pensava no que eu iria dizer aqui, uma idéia por um lado engraçada, por outro muitíssimo espantosa - ao menos para mim: A música é o ‘objeto’ mais transicional possível, depois de Deus. E cá entre nós, na minha modesta opinião, a Ele certamente agradaria muito essa idéia. Ou, dito de outra forma: Segundo uma velha piada judaica, (creio que contada por Woody Allen), foi porque Deus percebeu que daria muito trabalho encontrar-se ao mesmo tempo em todos os lugares, para tomar conta de todo o mundo, que Ele inventou as mães. E, acrescento eu: Foi porque mesmo as mães não podem estar sempre em todos os lugares, que Deus resolveu aperfeiçoar a Obra um pouco mais, e criou a música
Publicado em 01/01/2000
Davy Litman Bogomoletz - Psicanalista do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro-Tradutor para a Imago Editora dos títulos: Natureza Humana D.W.Winnicott O Filho Ilegítimo Gérard Haddad Freud - Um Judeu sem Deus Peter Gay
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