(In) disciplina na Escola.
AFINAL DE QUE É QUE ESTAMOS A FALAR?
Ordem, disciplina, castigos, laxismo, desresponsabilização e punição são os vocábulos mais utilizados por aqueles que, de forma mais ou menos prolixa, têm vindo a encher as páginas dos jornais com artigos sobre o novo regime disciplinar das escolas do ensino básico e secundário que o Ministério da Educação concebeu. Das críticas às ilusões rousseaunianas do documento, até à ofensiva trauliteira de 'O Independente'-Manuel Monteiro-Maria José Nogueira Pinto, passando pelas vozes sensatas, avisadas e críticas dos de sempre, encontra-se de tudo um pouco: constatações em excesso, proclamações apocalípticas quanto baste, demasiados equívocos e a ignorância, quase crónica, da opinião publicada relativamente aos assuntos relacionados com o que diz respeito à educação escolar.
E afinal o que propôs a equipa ministerial de tão controverso e subversivo que leva a que a acusem de tentar instalar um PREC na educação ?
Nada mais do que um documento eivado de excelentes princípios pedagógicos, de intenções bastante lisonjeiras e de soluções absolutamente inócuas que em substância pouco diferem das medidas previstas na regulamentação que pretendem substituir.
Seria, contudo, um equívoco continuar a insistir na vulnerabilidade das medidas propostas, a exemplo do que tem vindo a ser explorado pela generalidade dos artigos que lemos. Esta não é, em nossa opinião, a questão a equacionar no âmbito de uma discussão que se pretende socialmente útil e educacionalmente relevante e, por isso, cremos que mais do que dissecar as propostas apresentadas pelo Ministério da Educação no sentido de promover a regulação da convivência e da disciplina no seio das escolas, importa antes começar por discutir, entre outras questões:
(I) qual o sentido e a organização de um projecto de escolaridade básica adequado às necessidades e exigências do tempo em que vivemos ?
(II) qual o sentido e a organização do Ensino Secundário ?
(III) qual a adequabilidade das propostas relativas à gestão e autonomia das escolas no sentido de contribuirem para a sua democratização e desenvolvimento ?
(IV) quais as implicações pedagógicas, institucionais e organizacionais da regulamentação relacionada com as Equipas de Apoio Pedagógico ?
(V) que tipo de configurações deverão assumir os projectos de formação inicial de professores nos mais diversos níveis de ensino ?
(VI) qual o sentido e a utilidade do actual projecto de formação contínua de professores ?
É que a problemática com que nos defrontamos não é, prioritariamente, a de saber como se combate a indisciplina, mas a de discutir como se constroem projectos de intervenção educativa capazes de se assumirem como oportunidades credíveis de aprendizagem e desenvolvimento pessoal, social e profissional em contextos escolares caracterizados pela diversidade e heterogeneidade das populações que acolhem. Esta é , pois, a questão que vale a pena equacionar e, só em função da mesma, é que se torna aceitável abordar, posteriormente, o quadro regulamentador das medidas de natureza disciplinar passíveis de ser aplicadas de um modo útil e educativamente pertinente nas nossas escolas. Acreditamos que só assim é que será possível fugir às opiniões fáceis, à demagogia populista e aos equívocos de intelectuais serôdios que confinam o seu saber sobre educação e escolas à leitura apressada de 'Os filhos de Rousseau'.
De facto, pergunta-se como será possível conferir qualquer credibilidade a artigos de opinião que, a pretexto da contestação à proposta do M.E., se permitem oferecer-nos afirmações tão gratuitas, como estas que não resistimos a transcrever: 'Como professor universitário atento e preocupado que sou, tenho uma medida muito exacta dos efeitos, na nossa juventude, do sistema de ensino vigente. Como não é esse exactamente o tema deste texto limito-me a dizer que os alunos são, todos os anos, significativamente diferentes: mais ignorantes, menos responsáveis, menos autónomos, maisindiferentes, sem perspectivas'(1)..
Até a folha noticiosa para a comunicação social que a Igreja Viseense edita não deixa de perguntar: 'Cristo não aplicou correctivos ?...'(2)
'Contra a indisciplina só a força' concluiu 'O Independente' em título de um artigo que pretende apontar os caminhos a seguir neste campo aos responsáveis pelo Ministério da Educação. De acordo com a experiência da Grã-Bretanha onde, segundo o referido jornal, se vêem alunos com armas em punho, estragos avultados e violência contra professores e alunos, os docentes 'passam a ter carta branca para lidar com os alunos violentos, sendo ajudados por câmaras de vigilância instaladas nos corredores e nos pátios das escolas, intervenção policial e aconselhamento sobre a melhor maneira de tirar as armas que os alunos teimam em levar para as aulas' (3). Em suma, a situação descrita é inelutavelmente crítica. Mas o que é que isso tem a ver com as escolas portuguesas ? No mínimo, é leviano justificar a necessidade de medidas repressivas nas nossas escolas, invocando para isso as dificuldades sentidas pelos professores britânicos.
O que se passa então neste país para que um documento que, se o lermos com atenção, até é capaz de ser mais repressivo que a legislação em vigor, desnude tanta irracionalidade, tantos medos, tanta descrença na capacidade da educação escolar poder assumir-se também, e a seu modo, como uma oportunidade de inclusão e de afirmação pessoal e social para muitas das nossas crianças e dos nossos jovens ?
Lê-se os jornais e sabe-se que todos acham ser muito urgente discutir como se poderá superar a crise de autoridade dos professores. Aprende-se que se torna necessário seleccionar os educáveis, de forma a identificar aqueles cuja recuperação depende de instâncias colocadas a montante das escolas; subentende-se a saudade da palmatória por detrás do apelo à ordem pública, mas, pese a retórica refinada dos articulistas, continua a ser necessário perguntar como é que isso deverá e poderá ser feito numa sociedade democrática que, pelo facto de se afirmar como tal, enfrenta um dos seus mais complexos e decisivos desafios: o da construção de uma educação escolar básica de natureza inclusiva, ou seja, capaz de implementar uma filosofia curricular alternativa à do currículo-pronto-a-vestir, capaz de enterrar o regime de sequencialidade regressiva entre níveis de ensino, responsável pelas taxas de mortalidade escolar insultuosas neste Portugal do fim do século, capaz, enfim, de permitir a afirmação das escolas como centros locais de educação e não como serviços locais do Estado.
Sabendo nós que o tempo em que vivemos não se caracteriza tanto pela personalidade autoritária mas mais 'pela desestruturação do superego' (Habermas, 1993), sempre diríamos que a angústia com que se discute o diploma ministerial sendo legítima, não justifica a leviandade e a desresponsabilização dos discursos que pretendem tornar as crianças e os jovens como o princípio e o fim de todas as medidas a adoptar. Comece por reconhecer-se que a indisciplina nas escolas pode ser abordada como um indicador da crise de um modelo de educação escolar que se alicerçava num princípio tão simples como perverso: ensinar tudo a todos como se de um só se tratasse; para em seguida se compreender que a impotência das escolas face aos problemas que os seus alunos lhes colocam, não sendo apenas uma questão do foro educativo, é, em última análise, um desafio a que as escolas não se podem furtar. Sem se pensar que existem soluções mágicas ou exteriores aos contextos escolares, assumindo-se que tal desafio implica a assumpção de riscos, de inêxitos e de conflitos, fazemos nossas as palavras de Daniel Sampaio quando escreve: 'Organizem-se e tentem, se possível, não excluir ninguém'(4).
O que é que o documento do Ministério tem a ver com estes propósitos e este projecto ? Provavelmente muito pouco. Sobram em intenções, o que falta em reflexão. Propondo estas medidas, o M.E. permitiu uma ofensiva conservadora sem ganhar nada com isso. A mudança transitória dos alunos para outras turmas ou a obrigatoriedade de realizar trabalhos comunitários sendo soluções, em certos casos possíveis, desejáveis e pertinentes, nunca poderiam ser decretadas como medidas disciplinares exclusivamente associadas a uma tipologia hierarquizada de comportamentos disruptivos. É que a intervenção nestes casos implica uma avaliação e um conhecimento contextualizados das circunstâncias em que tais comportamentos ocorreram, de forma a ser possível decidir quais as medidas a adoptar posteriormente. Situação que impossibilita o Ministério da Educação de prescrever o que quer que seja neste domínio.
Daí que talvez fosse mais avisado, e útil, definir apenas um código de princípios que balizasse as possibilidades e os limites da intervenção das escolas neste âmbito, deixando, posteriormente, para estas a responsabilidade da construção dos seus regulamentos internos, tal como já se lhes propõe, por exemplo, que assumam a iniciativa pela construção dos seus projectos educativos.
Desenganem-se contudo, aqueles que esperam de qualquer decreto ministerial a solução para este e outros problemas. As escolas são contextos demasiado complexos para serem abordadas de um modo tão simplista e, enquanto organizações com uma cultura própria, assumem-se como espaços de mediação social e instrumental a não desprezar quando abordamos os comportamentos daqueles que os percorrem. Neste sentido, quer os comportamentos disruptivos quer os comportamentos assertivos deverão deixar de ser entendidos como fenómenos individuais para serem compreendidos como fenómenos organizacionais. No compromisso com a construção de uma escola inclusiva, a questão do poder e das relações de poder terá de ser abordada em função de uma relação contratual a estabelecer entre todos os intervenientes. Tal como refere Postic: 'Não se trata de distribuir poder, nem de conceder uma parte do poder ao grupo. É uma dialéctica do poder que se deve pôr em prática, porque cada um - o docente, os membros do grupo - deve ter em conta as iniciativas, as responsabilidades que uns e outros exercem e as regras estabelecidas em cooperação. A regulação da acção educativa provém do jogo social' (Postic, 1984:182).
Entenda-se, então, que o problema da disciplina nas escolas implica, hoje, a discussão e a reflexão constantes acerca do sentido, das possibilidades e das limitações dos projectos de intervenção educativa que aí têm lugar. Não se confunda deliberada ou ingenuamente comportamentos delinquentes com comportamentos irreverentes que implicam intervenções necessariamente diferenciadas no âmbito dos contextos educativos. Compreenda-se que as transformações globais das sociedades contemporâneas são irreversíveis e que as escolas, a exemplo de outras instâncias e organizações, não poderiam ser imunes às mesmas. Da paz mitificada e podre do passado resta-nos a incerteza e a precaridade de um presente onde, apesar de tudo, é possível afirmarmo-nos como pessoas com direitos inalienáveis e uma consciência clara das nossas possibilidades de afirmação pessoal e cívica. Recuse-se, por isso, neste campo, o darwinismo educacional que, em última análise, impediria que muitos das nossas crianças e jovens pudessem dispôr de tais possibilidades. Não se trata de acreditar que é possível construir o céu na terra, mas antes de pensar que é necessário tentar fazê-lo o mais e o melhor que nos for possível. Não se trata de entender a Escola como um espaço cultural e socialmente omnipotente, mas de reconhecer que a afirmação deste pressuposto não nos desresponsabiliza enquanto agentes de intervenção educativa de compreender a dimensão humana da educação escolar e o desafio civilizacional que se nos coloca, hoje, neste âmbito.
Ariana Cosme
Rui Trindade
HABERMAS, J. (1993). Técnica e ciência como 'ideologia'. Lisboa: Edições 70
POSTIC, M. (1984). A relação pedagógica. Coimbra: Coimbra Editora Ltª
(1) Fernando Ornelas Marques in Público de 17.01.98
(2) Rodrigues Bispo in Comércio do Porto
(3) 'Contra a disciplina só a força' in Independente de 31.12.97
(4) Daniel Sampaio in Notícias Magazine de 2501.98
< Anterior | Próximo > |
---|