A celebração do Dia de Finados traz consigo, sempre, muitas possibilidades.
Sei, por exemplo, de duas amigas que viveram, recentemente, a experiência de
perder uma pessoa querida. Para elas, com a ferida ainda aberta, o dia será,
provavelmente, de uma saudade doída, de pranto ainda não estancado.
Meu pai se foi há 12 anos. Minha perda mais sofrida. Mas já curti o luto, e
colhi do tempo um lenitivo, um consolo. Para mim, em relação ao meu pai, o
dia de Finados será de uma saudade mais amena, feita de lembranças de
momentos bons vividos ao lado dele.
Mas sei também que para uma imensa multidão, o Dia de Finados, em plena
segunda feira, será mesmo oportunidade de esticar o feriado num sítio, numa
praia, ou mesmo curtir o sossego em casa ao lado da família e de amigos.
Para além das saudades, eu já tenho um programa para o feriado de Finados:
assistir novamente o filme *“Antes de partir” (The Bucket List)*, que já vi
no cinema e revi algumas vezes em DVD.
O filme conta a história de *Carter Chambers* (interpretado por Morgan
Freeman), um pai de família comum, que há 46 anos trabalha como mecânico e
descobre que está com câncer. Internado em um hospital, tem como companheiro
de quarto *Edward Cole* (Jack Nicholson), um empresário milionário que vem a
ser o dono do hospital.
Do alto dos seus milhões, *Edward* deseja um quarto só para si, mas, como
sempre pregou que em seus hospitais todo quarto precisa ter dois leitos para
que seja viável financeiramente, não pode ter seu desejo atendido, sob pena
de afetar a imagem de seus negócios.
*Edward* também está com câncer e, após ser operado, descobre que tem poucos
meses de vida. O mesmo acontece com *Carter*.
O mecânico, reflexivo diante da idéia da morte, decide escrever a sua "lista
da bota", algo que um professor de filosofia lhe passou como trabalho
décadas atrás. A tarefa consistia em listar coisas, experiências, desejos
que você gostaria de realizar antes de morrer, antes de “bater as botas”.
Ao tomar conhecimento da lista de *Carter, Edward* acrescenta a ela os seus
próprios desejos e propõe que eles os realizem juntos, o que levam ambos a
uma viagem pelo mundo para aproveitar seus últimos meses de vida.
A idéia não chega a ser original, o roteiro em alguns momentos é previsível,
algumas situações transitam na perigosa fronteira entre o clichê e o
pieguismo, mas o filme é irresistível, emocionante, apaixonante mesmo,
chegando a momentos de rara sensibilidade e ternura, como quando
*Edward*realiza o desejo de beijar uma linda mulher, um dos itens da
lista.
Aliás, o filme já valeria só pela interpretação de Nicholson e Freeman, dois
atores que dispensam comentários.
Ao final da sessão, é inevitável: todo mundo sai do cinema (ou do sofá),
pensando em sua própria lista: 10 desejos a realizar *antes de partir*...
Quando me vi diante desse desafio a primeira coisa que pensei foi: *10
desejos é muita coisa!*
Gênios da lâmpada, em geral oferecem três desejos. Fica mais fácil, até
porque muita gente escolhe, logo de cara, ganhar sozinho na Mega Sena, o que
vai facilitar a realização de boa parte da lista.
Mas e os desejos que o dinheiro não resolve? E aqueles que não serão
conquistados num passe de mágica?
Desejo, na verdade, é *construção*. E nem tudo pode ser construído apenas
com uma boa conta bancária...
Sei de pais e mães que desejariam a saúde de um filho. Grana pode garantir
médicos competentes, hospitais bem aparelhados, remédios de última geração.
No filme, os dois tinham tudo isso (*Edward* era dono do hospital). O câncer
ignorou os dólares e manteve o encontro marcado com eles...
Sei de homens e mulheres que desejariam ardentemente ter ao seu lado, de
novo, a pessoa amada. Grana pode até trazer de volta um corpo para ocupar o
lugar vazio na cama, mas não trará a ternura, a confiança, a admiração, a
cumplicidade, a conversa doméstica, a aventura de um fim de semana juntos,
essas coisas simples que construímos no cotidiano e que fazem um homem e uma
mulher se sentirem companheiros...
Sei de pessoas que só pediriam apenas uma noite de sono, em paz. Outras para
quem bastaria eliminar as obrigações com hora marcada, a agonia no trânsito,
o mau humor do chefe, a tirania do consumo, a ansiedade opressiva do mundo
que quer as coisas pra já quando eu as estou querendo pra sempre...
Penso em tudo isso e pergunto ao meu coração: e você companheiro, que
desejos quer realizar *antes de partir*? (lembrando que não estou com
nenhuma pressa...)
Penso, reflito e minha lista vai emagrecendo. Já conquistei tanto, já
realizei demais. Às vezes tenho a impressão de que, ao invés de ganhar uma
bolada, de uma vez, na loteria, a vida resolveu me dar o pão ‘nosso’ de cada
dia, o suficiente, todos os dias...
Mesmo assim, resolvo buscar, bem lá no fundo, possíveis desejos não
realizados.
Penso mais, rezo, contemplo... E, de repente, o susto!
Deparo-me com desejos que não tive coragem de confessar nem a mim mesmo. Não
porque sejam absurdos ou doentios, mas porque tenho, às vezes, dificuldade
em assumir meus sonhos de felicidade pessoal. Porque não tive coragem, até
agora, de partir para uma viagem ao outro lado de mim mesmo, onde estão meus
desejos adormecidos.
Termino minha meditação serenamente. Reduzo minha lista a um único
desejo: *viver
sem medos as possibilidades do amar e ser amado. *
Se realizar esse sonho, terei alcançado, quem sabe, o maior grau de
liberdade que um ser humano pode conquistar. Pois, como disse Santo
Agostinho, *“ama e faze o que quiseres...”.*
O amor é a tinta da caneta com a qual escrevo, todos os dias, a minha lista
de desejos. A letra, por vezes firme, às vezes trêmula, é minha. Mas tudo o
que faço traz a marca, a cor, a caligrafia do Amor que me amou primeiro, e
me convida, todos os dias, a realizar o seu desejo amoroso em mim, *antes de
partir* em direção ao nosso definitivo e permanente encontro.
E você, meu querido companheiro, minha querida companheira de com
partilhando, a quantas anda a sua “lista de botas”...?
Eduardo Machado
31/10/2009
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