Desde que comecei a
trabalhar no Colégio Imaculada tenho experimentado algo que
amo fazer e, há anos, não tinha oportunidade; andar a pé
pelas ruas agitadas do centro da cidade.
De vez em quando me pego,
sem nenhuma pressa, observando o corre-corre ao meu redor, e
eu lá, contemplando detalhes, saboreando a vida que pulsa em
mim e à minha volta. Nessas ocasiões, o itinerário exterior
às vezes me leva a um passeio pelas ruas, avenidas, atalhos
e becos da memória. O que, frequentemente, vira história.
|
Um dia desses saí
do colégio e fui andando até a Cúria Metropolitana,
para uma reunião de trabalho. Caminhada de poucos
quarteirões, mas quase não chego lá. É que, no meio
do caminho, tenho que passar pela Praça da
Liberdade. E a praça é, para mim, um oásis, uma
tentação, um convite a parar, saborear, meditar...
Olho o
relógio. Há tempo. Diminuo o ritmo dos passos.
Bem na alameda central da praça observo um menino
que acaba de convencer a mãe a lhe comprar um
catavento colorido. O vendedor, solícito, abaixa a
barra de isopor onde os cataventos estão espetados,
até a altura dos olhos brilhantes do menino, para
que ele escolha um. Depois de uns segundos de
hesitação, lá vai o garoto correndo pela alameda com
o catavento girando loucamente no compasso dos seus
pés.
Em mim, descompassados, versos de Chico Buarque
atravessam correndo a alameda central do meu
coração:
|
“Roda mundo, roda gigante,
roda moinho, roda pião, o tempo rodou num instante, nas
voltas do meu coração...”
Junto com a
canção, vem, não sei de onde, uma saudade desencontrada,
como se aquele menino fosse eu, e o catavento, girando,
movesse o poço fundo da memória e trouxesse, de lá,
histórias da minha infância...
E o olhar de saudade desce
a Rua Espírito Santo, logo aqui pertinho, e segue até o
Jardim de Infância Delfim Moreira, minha primeira escola.
Ele continua lá, espremido
entre os prédios da cidade grande, resistente, improvável.
Das brumas do muito tempo,
vem o rosto quase transparente de dona Hilma, minha primeira
professora. A imagem de um coelho atravessa a cena,
correndo, e me lembro do pobre coitado que era solto no
pátio, na hora do recreio, coisa impensável hoje em dia,
para nós corrêssemos atrás dele até a exaustão. Nossa e do
coelho. Crueldade...
Olho o relógio, falta
ainda algum tempo para a reunião... o catavento continua
girando.
Do Delfim Moreira para o
Grupo Escolar Carlos Góes onde Dona Íris reinava, poderosa.
Por onde andará aquela senhora que dominava a todos com um
simples olhar?
Fico pouco por lá e já
chego, desconfiado, a uma escola grande, organizada, o grupo
Escolar Silviano Brandão, ali no bairro Lagoinha.
Na tela da memória dou de
cara comigo e meus colegas, um bando de meninos perfilados
no pátio, durante a hora cívica, orgulhosos e desafinados,
cantando o hino da escola.
“Nossa escola é templo
sagrado, onde acesa a luz da instrução
Ilumina
seu vulto amado, imortal Silviano Brandão...”
À nossa frente, orgulhosa,
a diretora, dona Maria Carabetti França, parecia uma atriz
de cinema, não pela beleza, mas pela pompa e circunstância
com que se apresentava diante dos alunos.
No sopro do vento, que
gira o catavento, eventos afloram, agitando minhas
lembranças.
Duas se destacam: uma aula
inesquecível da Dona Aracyra (merece uma crônica especial) e
a visita do governador Magalhães Pinto à nossa escola.
O Paulo Esdras, ao meu
lado, o mais cívico de todos, agitava bandeirinhas de Minas
e do Brasil. A turma em duas alas, fazendo um corredor, para
receber o governador. A banda da Polícia Militar tocando
“Oh, Minas Gerais” enquanto um homem baixinho, sorridente,
completamente careca, desfilava ao lado de Dona Maria
Carabetti, ainda mais pomposa e circunstanciosa.
Datas comemorativas já não
me chamavam muito a atenção, sempre gostei mais de apreciar
os outros dias, os anônimos, no cotidiano, mas aquela
festividade ficou na minha memória. Talvez por que, tempos
depois, já no ginásio, fui a uma outra festividade cívica
onde o governador estava novamente presente. Coisa rara na
vida de um garoto, topar duas vezes com sua excelência. O
evento era uma “parada” onde, hoje eu sei, se comemorava a
vitória da “Revolução” de 64, o golpe militar do qual ele
foi um dos líderes.
Eu tinha onze anos e não
sabia que ali, roubavam o meu título de eleitor.
Na História que se seguiu,
Magalhães Pinto viu frustrado o seu sonho de ser presidente
e eu tive que esperar 25 anos para votar para presidente, em
1989. Em minha geração a ditadura fez bodas de prata...
Um rápido
olhar ao relógio lembra outra ditadura, a das horas, e o
menino veste terno e gravata. O vento para de soprar e o
catavento cessa seu giro, quedando em minhas mãos inerte,
paralisado.
No descompasso
do meu coração, Chico insiste:
“No peito a saudade
cativa, faz força pra o tempo parar
Mas eis que chega a roda
viva e carrega saudade... pra lá...
Roda mundo, roda gigante,
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu
coração...”
Eduardo Machado
20/11/2009
|