Texto de Jane Haddad para o livro: A pedagogia e a infância que queremos

QUEM É O SUJEITO CRIANÇA FRENTE AO IMPERATIVO “SEJA FELIZ”

Se quisermos saber como melhorar a memorização do curso ou como a leitura de grafemas pode produzir fonemas, é para o lado das neurociências que devemos olhar e não para o lado de uma teoria da relação com o saber. Mas se quisermos saber por que o aluno escuta (ou não) o curso e porque ele lê o livro em vez de ir jogar futebol com os amigos, as neurociências dificilmente têm utilidade e é pela relação com o saber que temos que nos interessar.

Bernard Charlot (2021, p. 3)

    Quem é o sujeito criança que nós adultos mais experimentados em nossas vidas, estudos, pesquisas, leituras e debates estamos deixando escorrer pela educação? Minha trajetória na educação como professora me fez buscar a psicanálise para conversar e atuar. Passados trinta anos atuando no magistério, posso dizer que o meu fazer educacional foi e é orientado pela psicanálise, apesar de reconhecer o que Freud escreveu em seu texto Análise Terminável e interminável (1937), em que já nos alertava sobre os três ofícios impossíveis: educar, psicanalisar e governar. Educar e psicanalisar é da ordem do impossível, já que a pulsão é ineducável, educar está longe de ser um conjunto de procedimentos e técnicas de como se dar bem e ser feliz.

Freud, que escreveu para todos, embora poucos suportem lêlo, já dizia que a psicanálise, ao lado da ciência, era apoiada na busca incessante de um conhecimento mais aguçado da realidade, no sentido do esclarecimento, sempre incompleto, por isso educar foi considerado por ele uma das profissões do impossível. Entre aquilo que eu falo, e o que outro escuta, tem um vasto mundo. O mesmo autor afirmava que muitas vezes, aprendemos por admiração aos nossos mestres, até mais do que nosso próprio interesse em determinada matéria ou conteúdo científico.

Arrisco dizer que aprendemos por amor a alguém, objeto perdido ao nascermos e jamais achado, seria esse o amor que tanto buscamos? O amor ao primeiro objeto de amor? O que buscamos quando estudamos determinadas disciplinas? Tantas perguntas e quase nenhuma resposta, apenas pistas de marcas subjetivas que me fizeram professora e psicanalista.

No ano de 2021, me inaugurei como avó, para ser mais precisa, no 28 de janeiro de 2021, nasceu minha neta Maria Luiza, ainda na Pandemia do covid-19. De lá para cá, algo do meu desejo, se renovou, não sei se foi pela sensação de que poderia morrer na pandemia ou se foi algo em mim acordado. Mas fato é que reeditei meu DESEJO, tentarei em poucas palavras marcar o meu entendimento sobre o desejo em Psicanálise. Na espécie humana, o bebê humano não consegue sobreviver sozinho, suas necessidades mais primárias precisam ser acolhidas e cuidadas por um Outro (primeiro objeto de amor do bebê humano), com letra maiúscula, que seja capaz de transformar necessidade em demanda para que esse bebê humano atravesse do lugar de desejo dos pais para lugar de desejar, de vir-aser um sujeito desejoso.

Bom, voltando ao nascimento, fiquei pensando sobre meu desejo e sonhos a serem realizados ainda na educação, desejo esse que sustento há 59 anos: Seu nascimento foi um divisor de águas, marcando meu retorno a navegar sobre o início da vida. Meu amor por dois saberes: a pedagogia e a psicanálise me movem. O que quero deixar para você? Minha aposta no sujeito Criança e o desejo de ser construtora de uma educação que humaniza e só acontece na mediação com outro humano.

Essa humanidade, que nasce na presença de um Outro primordial, o primeiro a constituir para a criança a hipótese de um sujeito. “A humanidade não é uma natureza presente nela desde o nascimento, mas, sim, o que as espécies Homo produziram ao longo do tempo e é apropriando-se desse mundo que a cria geneticamente hominizada se humaniza. Por causa da condição humana, o mundo é sempre a ser conquistado, a ser inventado, e por isso a própria humanidade não é dada de uma vez por todas, ela deve ser construída, em um processo que nunca está terminado e que, por definição, não pode terminar” (Charlot, 2021, p. 12). É na humanidade que reside, ao mesmo tempo a invenção e reinvenção de ser e estar no mundo.

Ah minha criança, tornar-se humana é trabalhoso, penoso, e requer sustentação contínua do próprio desejo de viver, é atravessar sua história singular e encontrar o seu lugar, mesmo que provisório, sair do lugar de “ser falado” e aprender a falar, nomear, incorporar e separar-se das idealizações infantis tão necessárias para que possamos sobreviver à família e suas idealizações de filhos perfeitos, projetados para um futuro que está por vir, deixar-se vir a ser e comprometer-se com você e com o outro semelhante. Bom, se depender desta sua avó aqui…ainda vou ser parte dessa relação de saber, não saber, essa aventura humana. Certa vez, li que: “A infância é o único lugar onde sempre poderei voltar”. A escrita deste texto me fez voltar, retornar e avançar a cada lugar, isso é escrever e tornar-se humana, aprender requer uma poção de “dor”, não é isento de frustrações e privações (artigos de luxo em tempos de felicidade e bem-estar), os laços humanos não são fáceis, mas necessários, livros e saberes não podem ser (não devem) ser descartáveis, acredite: em alguns momentos, eles serão suas melhores companhias e você poderá criar relações íntimas com suas ideias, pesquisas e experiências. “Entrar em um mundo humano requer uma forma específica de regulação do desejo” (Charlot, 2021, p. 14). Portanto vou me colocar à disposição de te escutar em suas tensões e pulsões de vida e morte.

Ao escrever este pequeno texto para nosso e-book da UniProsa, fiz uns dez rascunhos e retornei ao primeiro escrito, escrever é uma forma de deixar marcas do meu desejo, esse meu traço particular que quero deixar para você. Esse texto é fruto de uma experiência íntima e intransferível, mas algo quero transferir a você. A transferência, nos ensina Freud, é um fragmento da repetição, e a repetição é uma transferência do passado esquecido. Não sou sua mãe e nem uma irmã mais velha, sou sua avó e acredito na infância. Minhas asas serão suas palavras. Pode sonhar Maria Luiza, você vai voar nas palavras, marcar  reticências em sua vida e eu? Eu estarei aqui, aí, te acolhendo e acompanhando. Na retrospectiva da minha história, isso faz toda diferença e com certeza aposto que fará para sua também. O que quero transmitir para você? Como escolher uma boa escola para você? Onde está o adulto do mundo atual? Será possível ajudar você a sobreviver como espécie humana? Pois, às vezes tenho a impressão de que os adultos estão se demitindo de suas funções. Os adultos parecem recusar em se responsabilizarem pelas crianças, abandonando-as aos seus próprios recursos, protegendo vocês de qualquer infelicidade, omitindo leis de convivência, e noções de cultura. Quem serão os professores daqui a sete anos? Já que, “(…) A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua responsabilidade se assenta na responsabilidade que ele assume por esse mundo” diz Arendt (2002, p.239). Lembremos, que foi observando a sociedade repressora que Freud conseguiu chegar a muitos adoecimentos psíquicos e barbáries.

Seu nascimento, evocou lembranças da minha própria infância, minha percepção de desamparo, frente aos adultos que me cercavam, mas também revivi a importância que teve o afeto que recebi da minha tia Salua, responsável pelo que me tornei e também revivi a lembrança das minhas primeiras professoras, que não me condenaram ao silêncio. “Um bebê não se lembra de ter sido bem segurado – o que ele se lembra é da experiência traumática de não ter sido segurado bem o suficiente” (Winnicott, 2020, p.76). Seu nascimento trouxe esperança em tempos de desesperança, minha energia pulsional desloucou-se ainda mais para finalidades psíquicas e sociais das quais sou muito envolvida. No momento que te vi, fui tocada (pelo objeto a) no sentido lacaniano: “o desejo remete assim a uma luta moral. Não é uma demanda, nem uma necessidade, nem a realização de uma aspiração inconsciente, mas uma busca de reconhecimento impossível de saciar, uma vez que ele incide sobre uma fantasia, isto é, uma ilusão ou uma produção do imaginário. Ele é desejo do desejo do outro” (Roudinesco, (2019, p. 95). E também pelo sentido charlotiano (2000, p. 81 e 82): “O desejo do mundo, do outro e de si mesmo é que se torna desejo de aprender”, essa dinâmica interna do movimento, em que “o desejo é a mola da mobilização”. Então, como vocês podem me acompanhar, Educação e Psicanálise se entrelaçam na minha relação com o saber e também nas minhas agonias entre formação de professores e a clínica psicanalítica. Sigo viva, lendo, escrevendo, pesquisando e acolhendo e mantendo meu desejo VIVO apesar dos tempos em que vivemos.

Acredito que com seu nascimento, eu nasci de novo, renasci de um tempo de covid, minha criança não cessa de se inscrever e transcrever palavras. O modo infantil? Esse está mais acordado e vivo em cada um de nós adultos sobreviventes de tantos imperativos de ter que se encaixar e dar PROVAS em “esquemas cognitivocomportamentais” do tipo: altas habilidades, hiperativas, deprimidas, dissociativas, violentas, autistas… algo que possa acalmar adultos ansiosos e em falta com seu próprio desejo; classificar é um imperativo contemporâneo onde pais, professores, médicos e psis brincam de GURU. Enfim, acredito que algo conseguirei te transmitir: o desejo de SABER, de escrever, de buscar na memória, essa que revisitei, e que não se evoca com a neurociência e seus imperativos de seja normal, feliz, e sim em sua relação com o saber de si, para poder saber do outro e do mundo, que queremos ajudar a existir e a sobreviver esses momentos sombrios. Passei a abrir um baú (interno) repleto de memórias guardadas e até recalcadas em tempo de final de análise (que me encontro), perguntas sobre minha história, visitei mesmo sabendo sem saber meus amigos invisíveis daquela época, me recordei de tantas vezes que brincava de ser professora e até tirei do meu baú (externo) minha boneca preferida (Giovana, presente da minha tia Salua), e hoje, é sua boneca preferida, juntamente com meu primeiro diário escrito no ano de 1973, que guardo até hoje, no auge dos meus 59 anos.

Para uma Psicanalista atenta e uma Educadora humanizada, deparar com a própria castração e seus fantasmas, por si só… já é uma travessia de uma educação idealizada para um ideal de educação. […] Por isso, fuja de temas gerais, refugie-se naqueles que seu cotidiano lhe oferece, descreva suas tristezas e seus anseios, os pensamentos fugidios e a fé em uma beleza qualquer – descreva isso tudo com sinceridade íntima, silenciosa e humilde e utilize coisas ao seu redor para se expressar, as imagens presentes em seus sonhos e os objetos de sua memória”. (Rilke,2022, p. 22-23). Olhe para dentro de si e toque a humanidade de cada UM.

 

Referências

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.

CHARLOT, Bernard. Da Relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.

CHARLOT, Bernard. Relação com o saber, formação dos professores e globalização: questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005.

CHARLOT, Bernard. Educação ou Barbárie: uma escolha para a sociedade contemporânea. São Paulo: Editora Cortez, 2020.

CHARLOT, Bernard. Os Fundamentos Antropológicos de uma Teoria da Relação com o Saber. Revista Internacional Educon, Volume 2, n. 1, e21021001, jan./mar. 2021, p.1-18. https://doi.org/10.47764/e21021001.

FREUD, Sigmund. Análise Terminável e Interminável: (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 23) (1937). Rio de Janeiro: Imago, 1976.

LACAN, Jacques. A locução sobre as psicoses da criança. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003 (original de 1968).

RILKE, Rainer M. Cartas a um jovem poeta. Tradução Cláudia Dornbusch. – São Paulo: Planeta do Brasil, 2022. 78 ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário amoroso de Psicanálise. Tradução André Telles. – 1.ed.- Rio de Janeiro: Zahar, 2019. WINNICOTT, Donald W. O ambiente saudável na infância. In D. Winnicott, Bebês e suas mães. Ubu, 2020 (trabalho originalmente publicado em 1967).

Jane Patricia Haddad

Avó, pedagoga e psicanalista

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