"Entre os Muros da Escola" trata da realidade de um escola na periferia de Paris, mas pode falar pelo Brasil
Nilton Bueno Fischer, professor colaborador PPG/EDU/UFRGS (programa de pós graduação em educação UFRGS) e do mestrado Unilasalle
Entendo e proponho que este título sirva não só como uma espécie de metáfora retirada do título do filme do Laurent Cantet, Entre os Muros da Escola (em cartaz na Capital) mas, especialmente, como uma chave de leitura para a compreensão das inúmeras tentativas de interação que a escola pode e tem condições de agir no sentido da construção de uma ‘educação de qualidade’ em cada entorno social onde ela estiver. Aliás este filme bem que poderia fazer parte de vários roteiros daquilo que também ocorre em nossas escolas públicas. Penso naquelas que tenho algum conhecimento e que estão situadas em nosso Estado e em especial em torno de nossa capital. Escrevo isso porque muitos de nós, professores, nos deparamos com essa conhecida situação de uma sala de aula onde estão adolescentes que convivem em cotidianas relações com o mundo adulto, tanto conosco como com os quadros gestores das escolas, nas figuras dos supervisores, orientadores e a sua própria direção.
Neste filme o ‘tom’ realista da cultura escolar se acentua nas diversas reuniões de avaliação coletiva dos alunos através dos nossos conhecidos ‘conselhos de classe’. Nesse cenário interativo é que o filme revela sua qualidade e potência pois trata o simples e repetitivo, do cotidiano escolar, como fonte para um criativo roteiro que nos faz rever o quanto ainda precisamos nos debruçar sobre como ocorrem as relações nesse microterritório de uma sala de aula e o quanto fazem também parte de uma totalidade sóciocultural.
O título deste comentário é uma resposta que já lanço de início, pois os ‘muros’ apresentados no filme se mostram pelas culturas dos adolescentes em suas origens africanas, asiáticas, latino-americanas e francesas, todas combinadas nas vivências cotidianas de uma sala de aula. Instigante isso para o campo da pedagogia, pois estamos, em nosso país, num momento de elevada produção científica, em qualidade e quantidade, tanto em nossas faculdades de educação quanto nos institutos isolados de pesquisa. Assim, as contribuições das diversas áreas do conhecimento se tornam cada vez mais explícitas em aproximações com as práticas de sala de aula e na formação de professores. Mesmo que as especificidades da psicologia da educação, da psicopedagogia e teorias da aprendizagem estejam com sólidas trajetórias nas suas produções, constata-se também a indispensável contribuição e parcerias das áreas das ciências sociais, especialmente as da história, da sociologia, da antropologia, entre outras. No movimento relacional entre os campos do conhecimento e junto às práticas pedagógicas docentes de nossas escolas se combinam criativas e compreensivas fundamentações sobre o ato de ensinar. Também “quem são os nossos alunos e como eles aprendem”, bem como na fundamentação de processos formativos docente no sentido de “como nossos professores ensinam”.
Ora, o filme não foi resultante de um insight isolado, único e espontâneo de parte do seu diretor. Foi na disciplinada busca de situações vividas por estudantes – adolescentes, num período bem longo (quase um ano) em que a “metodologia de pesquisa interativa” com jovens que vivem na França que a equipe do filme obteve um vivo conjunto de depoimentos que serviram para a estruturação do filme em sua tradução possível no tempo e no cenário, quase único, de uma sala de aula. O mesmo diálogo que sustentou essa busca de registros e também para a seleção dos atores (leigos em sua maioria) é que nos traz de volta aquilo que foi cunhado por educadores brasileiros como Paulo Freire e Miguel Arroyo a respeito dos temas e palavras geradoras, que tentam compreender a vida vivida pelos alunos de nossas escolas.
A centralidade do diálogo, entre o professor e sua turma, poderia nos levar a uma visão somente parcial, somente positiva ou idealizada do efetivamente “vivido” na sala de aula, corredores, pátio e reuniões. Somos brindados com plásticas cenas e planos diretos de imagens que mostram os jeitos de escrita dos alunos em seus cadernos, as suas caretas, as suas trocas de olhares; seus cochichos e seus silêncios. Teríamos aí uma espécie de “proposta pedagógica” a ser seguida. Mas o diretor trouxe também imagens e falas do professor com a mesma densidade daquelas dos alunos.
Mas no momento em que os alunos desconfiam do pedido do professor para que escrevessem sobre suas vidas e de seus gostos revela-se o limite desse procedimento. O filme tem aí uma contribuição diferenciada, pois não simplifica a complexidade das interações entre jovens e adultos. O professor, como uma clássica atividade de sala de aula, tenta capturar informações para “sua” função de ensinar, informar e controlar. Os conteúdos e as correções sobre o ensino da língua francesa ficam como ferramentas auxiliares e subordinadas a esse poder do professor, e os alunos percebem e questionam esse procedimento. O realismo desse registro por parte do cineasta sinaliza um imenso respeito aos profissionais da educação que se torna, ao mesmo tempo, uma pista para continuidades em outros “entornos sociais” na medida em que supera uma certa tradição do pensamento pedagógico do “converter ao bom caminho e aos bons resultados”, apagando limites e contradições de nossas práticas de sala de aula. Confidencio que o meu gosto pelo filme está na sua intencionalidade em ser nada mais e nada menos do que uma explícita tentativa em “desvelar” o vivido na sala de aula, entre alunos e o professor e com as conexões possíveis com o entorno social e cultural dos alunos adolescentes e, ao mesmo tempo, como o mundo adulto se manifesta dentro dos seus territórios profissional e pessoal. Isso é muito bom mesmo, pois se no contexto da França o desempenho do professor foi associado como do “colonizador”, ao passar a “língua culta” como norma nós poderemos entender como outros conteúdos podem (ou não) exercer a mesma função disciplinadora. O foco não é a quantidade ou a qualidade do conteúdo, culto ou “popular”, mas sim a mediação que o professor (adulto) realiza num processo de ajustes dos mundos e culturas de seus alunos (adolescentes) em suas múltiplas formas.
Depois da sessão de cinema, a gente fica com a cabeça em ebulição, assim como saímos de nossas aulas, provocados que fomos pelas cenas de um ano letivo tão bem concentrado em apenas duas horas do filme. Saí afetado por uma das cenas mais curtas e, ao mesmo tempo, mais silenciosas e até uma tanto lenta se comparada com o restante do filme. Após a entrega das histórias de vida de cada aluno, devidamente avaliadas pelo professor, quando todos já tinham saído festivamente da aula, uma aluna negra, dirige um expressivo olhar ao professor. A linguagem do olhar se transporta para a fala e ela diz, quase sussurrando: “Eu não aprendi nada” para responder a pergunta de despedida, de final de ano sobre o que cada aluno tinha aprendido ao longo do ano. O cineasta produziu continuidades com essa tomada, imagino eu, fazendo um convite para que a gente reaja também. Ficou em aberto o que fazer... e, por isso, no título, o plural nas pedagogias, nos diálogos e nos muros. Penso que o Cantent, neste filme, pedagogiou.
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