Entrevista: JOE GARCIA
Rever o currículo, capacitar os professores e investir nos vínculos são alguns dos pontos essenciais na redução da indisciplina escolar.
Por Luiza Oliva
Joe Garcia mora em Curitiba, mas passa boa parte do ano viajando pelo Brasil, em consultorias, cursos e palestras a pais e professores. Os trabalhos giram invariavelmente em torno de um grande tema: a questão da disciplina, dos limites, do afeto nas relações entre pais, filhos e escola. Joe, que é Doutor em Educação pela PUC/SP, também tem percebido que é comum a confusão entre violência e indisciplina. “A violência assusta mais, mas o grande ponto da escola, hoje, é a questão pedagógica da indisciplina.” Para o educador, a indisciplina pode ser pensada como algo relacionado ao desenvolvimento sociomoral da criança e do adolescente. “Vemos o bebê que prefere sair do colo e engatinhar, a criança que não quer comer aquilo que é oferecido, o adolescente que contesta valores. Porém, não podemos tratar da mesma forma a violência e naturalizá-la. É um grande complicador dizer que violência e indisciplina são sinônimos”, considera.
Joe aponta que a indisciplina causa um desgaste cotidiano dos professores, particularmente com uma parcela de 5 a 15% dos alunos. “É uma parte pequena da sala de aula que dá trabalho aos professores. Chamamos de uma faixa de alunos instáveis, imprevisíveis.” A violência escolar costuma ter mais visibilidade na mídia, explica o educador, do que a indisciplina e até mesmo do que a violência doméstica. “A escola ainda é um dos lugares mais seguros da sociedade, mais do que o próprio ambiente familiar, se analisarmos proporcionalmente a intensidade das agressões contra as crianças. Entretanto, os casos de violência escolar são mais destacados. A escola é um espaço muito observado na sociedade. Mas as relações na família deveriam ser melhor observadas, até porque elas se refletem nos processos de socialização da criança dentro da escola. Faz sentido, portanto, quando os professores sugerem que há um nível de relação entre a indisciplina na escola e o ambiente familiar”, conclui.
A construção coletiva de limites, a capacitação dos professores focada na questão da indisciplina e a criação de vínculos que promovam um ambiente de acolhimento em sala de aula estão entre as ações benéficas em prol de um ambiente positivo nas escolas. “Em termos de disciplina, seria indicado trabalhar de forma a estimular o melhor nos alunos, que dedicar-se a inibir aqueles que consideramos indisciplinados. A Educação, afinal, precisa estar relacionada a uma forma de percepção qualitativa sobre o outro.”
Em meio a sua intensa agenda de trabalho nas escolas, onde principalmente capacita professores para as questões da indisciplina escolar, interdisciplinaridade e educação em valores humanos, Joe Garcia concedeu a seguinte entrevista à Direcional Educador.
DIRECIONAL EDUCADOR - Há confusão hoje na escola entre os termos indisciplina e violência? A indisciplina leva à violência? Como delimitar as duas situações?
JOE GARCIA - Indisciplina e violência representam diferentes formas de desordem nas relações de convivência e aprendizagem na escola. A confusão entre esses dois fenômenos me parece resultar da fronteira nem sempre clara entre algumas formas de indisciplina e violência, especialmente em relação às chamadas incivilidades.
No caso da violência, essa desorganização nas relações envolveria o uso de agressividade com alguma intenção destrutiva. A violência, portanto, representa uma ruptura mais radical na convivência escolar. A expressão mais usual de violência na escola hoje é conhecida como bullying, termo que descreve formas de intimidação praticadas, dentro da escola, de uma forma recorrente, entre pares e em condições desiguais de poder.
A indisciplina, por seu turno, está relacionada mais à esfera das relações pedagógicas. Ela se refere a desordem produzida através da transgressão das regras que organizam as relações pedagógicas que sustentam o desenvolvimento da aprendizagem. A indisciplina, portanto, afeta a estabilidade do tecido de relações pedagógicas e pode gerar implicações sobre a qualidade dos processos de ensino-aprendizagem.
Na escola, é possível observar algumas relações entre violência e indisciplina. O cenário mais usual é encontrarmos a violência como uma causa direta ou indireta de problemas de indisciplina. Isso ocorre porque a violência fragiliza as relações de convivência, sob diversos aspectos, bem como a própria predisposição para a cooperação em sala de aula, que é um elemento fundamental para o processo de ensino-aprendizagem.
O senhor poderia destacar as principais causas da indisciplina em sala de aula?
Há uma variedade de causas possíveis para a indisciplina escolar, que podemos reunir em dois grupos. Um desses grupos engloba as causas consideradas externas à escola. Tais causas incluem, por exemplo, a violência social, a influência da mídia e o ambiente familiar. Sob a perspectiva dessas causas, a indisciplina na escola seria reflexo de questões e conjunturas mais amplas que atravessam a sociedade.
O segundo grupo de causas engloba aquelas encontradas no próprio ambiente escolar. Aqui podemos destacar, por exemplo, a qualidade do currículo, a relação professor-aluno, a motivação do aluno, bem como a própria clareza quanto à disciplina esperada em sala de aula. Assim, alguns incidentes de indisciplina refletiriam, por exemplo, uma falta de compreensão, entre os alunos, de quais seriam os limites desejados em sala de aula. Os professores nem sempre deixam claro suas expectativas sobre disciplina. Além disso, a disciplina esperada nem sempre é construída no coletivo, o que pode resultar não somente em falta de compreensão mas também em algum nível de resistência, particularmente quando é percebida pelos alunos como autoritária.
Em cada escola, em cada caso, é preciso avaliar as expressões de indisciplina e suas causas possíveis. Não raramente as expressões de indisciplinas refletem mais de uma causa. Esse tipo de avaliação pedagógica é muito importante para desenhar encaminhamentos, repensar o currículo e a cultura da escola, e a própria formação dos professores.
Acredita que os professores deveriam receber em sua formação conteúdos sobre como lidar com a indisciplina?
Sim. A formação é sem dúvida um aspecto essencial para a atuação dos professores em sala de aula, inclusive em relação à indisciplina. Em nosso País, entretanto, os cursos de Licenciatura ainda não destacam em seus currículos o estudo da indisciplina e cria-se uma lacuna importante na formação dos futuros professores. Ao longo da formação universitária os acadêmicos vão descobrir que há indisciplina nas escolas ao longo dos estágios curriculares, particularmente quando experimentam a docência na prática. Mas usualmente não recebem formação específica para lidar com essa realidade. Assim, os futuros professores saem das universidades sem o preparo devido.
É após a formação universitária, e já atuando nas escolas, que os professores têm maiores oportunidades de acesso a programas de capacitação que oferecem algum nível de conhecimento necessário para lidar com a indisciplina. Nesse cenário, muito comum no Brasil, as escolas precisam assumir um papel de maior responsabilidade formativa, propiciando aos professores oportunidades de capacitação focalizadas nas questões de indisciplina. A formação continuada é, portanto, necessária e pode fazer muita diferença no modo seguro como os professores vão lidar com a indisciplina em sala de aula. Penso que investir na formação continuada dos professores deve ser a primeira providência a ser tomada pelas escolas, mesmo quando não observam maiores problemas de indisciplina.
Como e quando o professor deve intervir em situações de indisciplina na sala de aula?
Penso que os professores seriam mais efetivos através de ações pró-ativas que auxiliem os alunos a desenvolver competência para a convivência e aprendizagem em contextos coletivos. Entre os aspectos fundamentais relacionados aos baixos índices de indisciplina estão atitudes e princípios que os professores poderiam exercer de forma pró-ativa em suas práticas de ensino em sala de aula. É importante, por exemplo, a construção de vínculos que promovam um ambiente de acolhimento em sala de aula. Também é essencial desenhar um currículo de qualidade, mas não somente entendido como aulas bem articuladas. E faz muita diferença quando os alunos, incluindo os considerados indisciplinados, experimentam sucesso na aprendizagem em sala de aula, inclusive na esfera social dessa aprendizagem.
Mas, além da atitude apropriada, os professores precisam estar atentos ao tempo das suas ações, particularmente quando diante de situações de indisciplina. A intervenção precisa estar colada aos eventos de indisciplina, mas atenta à necessidade de se respeitar a integridade dos alunos enquanto estabelece limites a determinados comportamentos. Existem muitas técnicas de intervenção. De fato, há muita tecnologia de controle social desenvolvida para se lidar com casos de indisciplina. Mas algo essencial revelado pela utilização desses procedimentos refere-se à fragilidade dos mecanismos de controle diante da finalidade atual da escola quanto a propiciar experiências de aprendizagem que favoreçam o desenvolvimento da autonomia dos estudantes. Nesse sentido, a melhor intervenção não seria aquela na qual o professor realiza sozinho, com base simplesmente em algum pressuposto hierárquico. Nas escolas, precisamos deixar para trás os caminhos tradicionais de controle e solidão, e exercer educação como uma prática social baseada em solidariedade.
Qual sua opinião sobre as aplicações de sanções disciplinares em sala de aula?
Essa é uma questão complexa e requer uma clarificação sobre a própria ideia de sanção disciplinar. Um primeiro ponto a considerar refere-se à importância de se ter claro, na escola, o que se entende por disciplina e indisciplina. Quando a noção de disciplina está muito relacionada à ideia de controle, as sanções disciplinares tendem a reforçar práticas de controle na escola. Em contrapartida, em uma escola onde se busca trabalhar disciplina como forma de autonomia moral, por exemplo, as sanções disciplinares podem se constituir em oportunidades do aluno rever o modo como está convivendo em grupo. Nessa perspectiva, sanções que envolvem práticas de reparação, por exemplo, são mais capazes de promover experiências de aprendizagem que sejam consonantes a uma perspectiva pedagógica progressista e atentas ao desenvolvimento sociomoral dos alunos.
Mesmo um trabalho avançado com disciplina formativa nas escolas pode prever a possibilidade de sanções disciplinares. Mas é preciso cuidar para que tais sanções sejam desenhadas sob bases efetivamente pedagógicas. Além disso, penso que as sanções devem ser exercidas como um último recurso de intervenção. Há vários tipos possíveis de sanções disciplinares, e penso que o essencial é que estejam em sintonia com a perspectiva pedagógica que orienta a escola.
É preciso lembrar que as sanções disciplinares precisam tanto sinalizar aos alunos que certos limites precisam ser respeitados, mas também constituir caminhos de retorno ao processo de ensino-aprendizagem. Ou seja, elas precisam reiterar a importância da convivência e da aprendizagem na escola.
Isso nem sempre é simples de se conseguir nas escolas. Mas é preciso cuidar para que as sanções disciplinares não se tornem simples mecanismos de controle e exclusão. Limites são necessários mas também é preciso cultivar tolerância e trabalhar vínculos positivos, mesmo naquelas circunstâncias nas quais os alunos agem de forma a nos mostrar que ainda precisam aprender mais sobre como conviver no ambiente escolar. Não podemos simplesmente punir um aluno por estar ainda aprendendo a conviver, mas de fato trabalhar pedagogicamente para ajudá-lo a perceber o que precisa aprender e mudar sobre o modo como está agindo na escola.
Que tipo de postura do professor gera mais indisciplina? E qual perfil costuma inibir o comportamento indesejado dos alunos?
Após décadas de pesquisa sobre essa questão sabemos que a postura do professor em sala de aula é fundamental para a disciplina, bem como para diversos outros aspectos do processo de ensino-aprendizagem. Entretanto, é preciso considerar algumas mudanças que vêm ocorrendo nos sujeitos e nos contextos das relações pedagógicas que encontramos nas escolas.
Professores muito controladores, por exemplo, eram considerados efetivos em escolas tradicionais. Hoje, exercer autoridade em sala de aula ainda é fundamental, mas outras formas podem ser construídas pelos professores tendo em vista um melhor ambiente de aprendizagem e disciplina. A autoridade hoje solicita certas formas de legitimação, que em sala de aula está muito relacionada à competência para ensinar e com a forma de tratamento que os professores dedicam aos alunos. Posturas autoritárias, hoje, não são toleradas pelos alunos, mesmo quando exercidas por aqueles professores considerados competentes na arte de ensinar.
Mas não há uma postura ideal, genérica, que se poderia sugerir aos professores, sobretudo se considerarmos toda a extensão da Educação Básica. Em cada caso, isso precisa ser construído de uma forma compatível ao contexto. Mas, penso que os professores seriam mais felizes e efetivos em sala de aula ao investirem em modos autênticos de ser e ensinar. Em termos de disciplina, seria melhor trabalhar de forma a estimular o melhor nos alunos, que dedicar-se a inibir aqueles que consideramos indisciplinados. A Educação, afinal, precisa estar relacionada a uma forma de percepção qualitativa sobre o outro. Nós professores precisamos trabalhar sobre nosso próprio olhar se desejamos que os alunos sejam melhores.
O senhor concorda com a afirmação de que a falta de noção de regras e limites das crianças é causada pela formação que recebem das famílias?
Há uma relação entre a forma como a criança age em casa e na escola, mas essa relação não é simples e linear. Uma pesquisa que orientei, há alguns anos, na Universidade Tuiuti do Paraná, revelou que há uma relação entre a qualidade da rotina que a criança experimenta em casa e a forma como ela lida com os limites na escola. Isso sugere a necessidade da escola buscar algumas informações sobre a vida da criança em casa, particularmente na Educação Infantil. Mas é preciso observar uma certa cautela ética e não transformar isso numa investigação sobre a criança e sua vida familiar.
A desconfiança dos educadores que atribuem "culpa" às famílias pela indisciplina na escola está muito relacionada à suposta falta ou pouca civilidade que algumas crianças demonstram na forma como agem no ambiente escolar. Embora muitos professores assumam a expectativa de que as famílias precisam dedicar maiores esforços na formação de valores básicos e conduta civilizada em seus filhos, ainda assim a escola deverá trabalhar diversos aspectos da formação humana, através do currículo, e ao longo de muitos anos. No mundo atual, esse desafio é inevitável às escolas e requer planejamento, formação profissional e um currículo em sintonia com a realidade. Enquanto isso não ocorre, os professores vão continuar desejando alunos melhores, enquanto se queixam daqueles que chegam até eles nas escolas.
Que ações preventivas a escola pode promover a redução dos problemas de indisciplina?
Há três ações gerais que penso seriam cabíveis às escolas. Uma delas refere-se à necessária construção de uma visão compartilhada sobre disciplina e indisciplina na escola. É preciso superar a distância entre os discursos e práticas dos professores, que gera contradição e solidão. Também destacaria a importância da formação continuada de professores em relação às questões de disciplina e indisciplina na escola. Finalmente, é preciso rever o currículo, sobretudo no que se refere ao trabalho com conteúdos atitudinais. É preciso, portanto, reinventar as experiências de aprendizagem proporcionadas na escola, relativas à disciplina.
Diversos estudos sobre indisciplina, publicados na primeira década deste século, não sugerem que a indisciplina esteja diminuindo, mas reafirmam esse problema em diversos países industrializados. Penso que um bom currículo pode fazer muita diferença na forma como as escolas vão lidar com disciplina e indisciplina nas próximas décadas.
O vínculo afetivo entre professor e aluno pode significar um recurso importante em relação à indisciplina?
Sim. As relações de cooperação em sala de aula solicitam vínculos autênticos entre professores e alunos. Se esse vínculo é afetivo, tanto melhor. Disciplina e indisciplina estão relacionadas ao tecido das relações pedagógicas em sala de aula. O fortalecimento desse tecido, através de vínculos afetivos, faz a diferença tanto para a qualidade da convivência quanto para a aprendizagem.
Há uma relação entre a capacidade de construir e manter vínculos com os alunos, liderança e disciplina em sala de aula. Esse é um aspecto tão importante que deveria ser parte da formação acadêmica de nossos futuros professores.
Estamos vivendo uma época de transformações e um certo estremecimento no sentimento de confiança. Isso apresenta um profundo impacto sobre as relações humanas, que também se reflete dentro das escolas. Estão em curso mudanças de ordem moral nas relações entre professores e alunos. A indisciplina é uma ponta do iceberg, que sinaliza outros desafios abaixo do horizonte observável. Assim, faz muita diferença quando convivência e aprendizagem, na escola, estão sustentadas por vínculos positivos.
É possível afirmar que a indisciplina já se manifesta na Educação Infantil? Como discernir a agitação normal presente nas crianças pequenas de um comportamento indisciplinado?
Sim. Há diversos estudos realizados, sobretudo nas últimas duas décadas, que afirmam a existência de indisciplina na Educação Infantil. Há indicações de que a indisciplina, nessa etapa da escolarização, estaria muito relacionada ao desenvolvimento sociomoral das crianças. Mas é preciso lembrar que a noção de indisciplina é algo construído nas escolas e que portanto reflete critérios. Assim, a observação de maior ou menor indisciplina estaria relacionada a critérios que definem o que seja indisciplina.
A simples agitação não pode ser entendida como indisciplina ou poderemos esvaziar o próprio sentido pedagógico da ideia de disciplina na escola. Uma distinção precisa se basear na leitura pedagógica que faremos do desenvolvimento da criança e de suas necessidades em cada etapa do seu crescimento. As indisciplinas da criança de Educação Infantil podem estar refletindo a ausência da necessária liberdade para aprender em determinada etapa do seu desenvolvimento.
Mas há também casos em que a inquietude revela ausência de noções de limites na convivência com outras crianças. É como se isso representasse a sinalização de um desenvolvimento ainda necessário à criança. Então, é a leitura pedagógica da criança a melhor fonte de discernimento sobre o que está em curso e aquilo que precisa ser feito. A indisciplina nos fala muito sobre como a criança está vivendo a escola.
Contatos com Joe Garcia:
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Matéria publicada na Revista Direcional Educador - Edição 68 de setembro/2010
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