Crianças e adolescentes são induzidos pelo game a tirar a própria vida. Pais devem abrir diálogo e acompanhar filhos de perto, dizem especialistas
Acessado em 16/04/2017
Por: Junia Oliveira, Gustavo Werneck e Mateus Parreiras
Baleia Azul poderia perfeitamente ser o título de um livro infantil, desses que levam as crianças a navegar pelos sete mares, a conhecer mundos distantes e dar asas à imaginação. Mas, na realidade, trata-se de um perverso e perigoso jogo virtual, que entrou em cena na Rússia, já chegou ao Brasil e, ao que tudo indica, está ligado à morte de Gabriel Antônio dos Santos Cabral, de 19 anos, em Pará de Minas. Nesse game, crianças e adolescentes são induzidos por um “mentor” a cumprir 50 tarefas diferentes, uma por dia, até o derradeiro desafio: tirar a própria vida. Enquanto isso, chega ao público uma nova série, que aborda temas como bullying e preconceito, na história de uma jovem e das 13 razões que a levaram ao suicídio. Essa fatalidade, de acordo com o Centro de Valorização da Vida (CVV), antes maior no meio dos idosos, se sobressai agora entre os jovens. “Estamos diante de um mundo em transição. Os modelos universais que guiavam as instituições escola e família hoje são diversos e não mais universais. O momento contemporâneo é de incertezas, de fenômenos que nos apavoram”, afirma a psicopedagoga mineira e mestre em educação Jane Patrícia Haddad.
No jogo, que pode ter matado 130 jovens na Rússia, entre as tarefas a cumprir, estão a de superar o medo, acordar às 4h20 e subir no telhado mais alto que encontrar ou ainda ir para uma ponte e se sentar na beirada. A tragédia envolvendo Gabriel Antônio, pai de um bebê de apenas 40 dias, encontrado morto na manhã de quarta-feira pela mulher sobre a cama do casal, depois que ela voltou de pernoite na casa da mãe, é a primeira em investigação em Minas relacionada ao game, mas há sinais de comprometimento perigoso de outros jovens com o aplicativo. Em BH, Jane Haddad atendeu, no consultório, uma vítima dessa novidade. Nos primeiros anos do ensino fundamental, o garoto estava viciado num joguinho macabro e ganhava mais pontos à medida que matava mais velhinhas. Dez anos depois, ele retornou para atendimento, mas agora devido a outro desafio: derrubar o “mentor” do Baleia Azul. “Ele se envolveu tanto que quase chegou ao fim. Numa das tarefas, o adolescente desenhou a baleia no braço, mas, depois de enviar a foto em tempo real, o ‘mentor’ se mostrou insatisfeito, dizendo que havia pouco sangue e o acusou de não seguir as regras. Esse jogo é a nova ‘modinha’ assustadora e algo nele capta diretamente a fragilidade dos adolescentes”, afirma a psicopedagoga com formação em psicanálise.
Para a mestre em educação, o jogo e a série são alertas sobre a necessidade dos adolescentes de se fazerem ouvir e se tornarem visíveis. Ela ressalta que é essencial a presença dos pais, independentemente da configuração familiar, na vida dessas crianças e jovens. No lado da escola, a especialista considera urgente trabalhar com propostas nas quais os alunos possam falar de seus sentimentos, com profissionais da saúde mental atuando junto às coordenações pedagógicas. “Percebo que as crianças e jovens estão sem rumo, já que notaram que seus modelos de adultos também estão inseguros”, diz.
Jane acredita que o momento é de aposta de que pais e professores encontrarão um caminho a seguir. “Estamos diante de um momento em que tudo pode ser negociado, deveres são barganhados. O mundo mudou e com essa mudança o modelo acabou”, analisa. Sendo assim, jogos como o Baleia Azul seriam uma das formas usadas por crianças e adolescentes para pedir socorro. “Uma criança de 9 anos, que passa oito horas em seu computador, sem acompanhamento de um adulto, não está propensa a tais aberrações?”, questiona. Daí, segundo ela, a necessidade de acompanhamento dos aparatos tecnológicos a que os filhos têm acesso e de atenção ao primeiro ambiente de aprendizagem: a família.
SOFRIMENTO Na série da Netflix “13 reasons why” (Os 13 porquês), a adolescente Hannah desperta a necessidade de mais atenção a filhos e alunos. “O suicídio já está entre as maiores causas de morte dos jovens”, destaca Jane Haddad. Para ela, o caminho é falar sobre o adoecimento psíquico. “Nós adultos estamos fragilizados, imaginem as crianças e adolescentes? Ninguém pode ser responsável pelo suicídio do outro, mas temos como levantar discussões nas escolas sobre o bullying, sobre o abuso sexual, sobre sexualidade, sobre famílias. A forma que muitas vezes o suicídio é abordado ou relatado (como na série) acaba aparecendo como uma saída para os que estão sofrendo”, diz. “A vida para muitos adolescentes está sendo sentida como insuportável. Fico me perguntando se a morte traz a eles um reconhecimento que eles não conseguem sentir em vida?”, provoca.
Para ela, no caso da personagem e de tantos outros adolescentes da vida real, há uma solidão e uma vitimização. No consultório, ela também atendeu uma menina de 14 anos que estava extremamente sofrida porque seu ficante havia pedido um nude como prova de amor. Ela enviou e, quando chegou à escola, todos já tinham visto e faziam comentários maldosos. “Indignada, ela me contava que não entendia por que ele havia feito isso. A garota quase não deu conta de lidar com tudo aquilo. A sorte é que juntas conversamos com a mãe dela que deu o suporte necessário, inclusive junto à escola”, lembra.
Os imprescindíveis laços reais
O momento atual não está nada fácil em diversas esferas. Há um desconforto geral com o sistema político, o desemprego, violência, banalização da vida. Na procura pelo sentido da vida, um déficit de passado e um excesso de futuro se apresentam como barreiras. O criador da psicanálise, Sigmund Freud, já alertava sobre os impasses da civilização diante da tão sonhada busca da felicidade no texto O mal-estar na civilização. A saída para vencer um profundo sofrimento psíquico, diz especialista, passa pela possibilidade de provocar nas novas gerações o desejo de estar junto dos mais velhos, de criar laços sociais com pessoas reais que façam sentido em suas vidas.
A mestre em educação Jane Patrícia Haddad afirma que os pais educam as novas gerações impondo aos filhos a obrigação de se dar bem na escola e no mercado. E se esquecem de que a vida requer prática ética do sentido, do amor, dos laços afetivos. “Crianças e jovens precisam perceber que não poderão ser tudo, não poderão ter tudo, terão de aprender a abrir mão de algumas coisas, suportar o mal-estar de viver”, diz. Os adolescentes precisam de sentido, de limites, de gente, de sonhos. A felicidade ou mesmo o sentido que eles buscam não está num jogo como o Baleia Azul. Lá está a ilusão, a cegueira, a saída falsa para suas angústias.”
Tudo isso passa por reconhecer que esses jovens não são o máximo nem precisam ser o melhor, o mais bonito ou o mais forte, de acordo com a psicopedagoga. “O momento é de dar a palavra às novas gerações. Escutar o que eles têm a dizer, recuperar o sujeito que está escondido em tantas exigências do mundo, exigências do futuro brilhante. O momento atual requer um desacelerar da vida e escutar os novos sintomas contemporâneos”, defende.
“O prazer jamais será completo, a vida para seguir deve ser incompleta, insatisfatória. Precisamos assumir que estamos prometendo às novas gerações um mundo completo e de satisfação. Isso não existe”, acrescenta, ressaltando que é preciso lidar com perdas e fracassos. “Estamos vivendo excessos e o pior é que isso ocorre com o consentimento dos pais. Estamos diante de muitas fragilidades, mas a maior delas é aquela dos vínculos afetivos.”